RJESPM_19

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 23 22 JANEIRO | JUNHO 2017 programação para esta ou aquela cor- rente de opinião. Nossa tese é de que esse objetivo é muito difícil, quando não impossí- vel, de ser obtido. Por duas razões. A primeira delas pode ser chamada de razão epistemológica. Definições sobre o que significa agir com impar- cialidade ou traduzir adequadamente a ideia de opinião pública nos obri- gam a enfrentar o paradoxo original- mente apresentado peloMarquês de Condorcet, na França pré-revolucio- nária, e “equacionado” no final dos anos quarenta do século passado por Kenneth Arrow, com seu teorema da impossibilidade. A tese fundamental de Arrow diz que, partindo de pressupostos bási- cos associados à autonomia dos indi- víduos e à racionalidade de suas esco- lhas 10 , é impossível obter uma escala de preferências para a sociedade a partir da ponderação de escalas equi- valentes apresentadas pelos indiví- duos. Admitindo-se o critério ele- mentar de transitividade das escolhas individuais, chega-se a uma escolha coletiva intransitiva. No universo da comunicação, podemos imaginar que isso diga respeito não apenas à esco- lha e ao ordenamento dos conteú- dos, como também aos estilos e pon- tos de vista a partir dos quais a infor- mação é apresentada. O argumento pluralista sugere que, à semelhança da impossibilidade de Arrow, é ilu- sória a expectativa de que um órgão de comunicação, público ou privado, possa produzir uma síntese, ou “edi- tar o debate da sociedade”, ordenando a informação “relevante” e capaz de refletir adequadamente preferências e interesses difusos dos indivíduos. Liberdade individual Aplica-se ao universo da comunicação a formulação do economista espanhol Antonio Argandoña, segundo a qual “não há bemcomum, entendido como a soma dos bens de todos os partici- pantes; o bemcomumresulta da cola- boração. É o conjunto das circunstân- cias, regras e quadros de atuação que permite a cada um atingir o seu pró- prio fim” (Alves e Moreira, 2004, p. 16). Segundo o argumento pluralista, a comunicação se apresenta, por defini- ção, como um bem da sociedade civil, de natureza difusa, e não do Estado. Um bem que escapa a qualquer pos- sibilidade de “síntese”, seja realizada por uma agência pública, privada ou independente. A segunda razão diz respeito direta- mente ao exercício da liberdade indi- vidual. Profissionais do jornalismo exercem seu ofício segundo os valo- res políticos, estéticos e morais que 10 Associados à inexistência de um ditador capaz de determinar a escolha coletiva; à autonomia dos indivíduos para apresentar ordens completas de preferências, o domínio irrestrito da escolha social e à independência relativamente a alternativas irrelevantes. 11 L. F. Verissimo, em carta ao então editor-chefe de Zero Hora , Augusto Nunes ( Zero Hora , 25/09/94). 12 Bucci observa a parcialidade das “pequenas escolhas” feitas pela TV Cultura de São Paulo, bem como pelos editoriais da Radiobrás. editorial assumir? Que tipo de “equi- líbrio” seria possível obter entre a quase infinitamultiplicidade de visões e opiniões, por definição instáveis e mutantes, que se produzem em uma sociedade complexa? Produzir um ranking de preferências comum a toda a sociedade, espécie de “bem comum” comunicacional, pode ser tão impossível como produzir uma equação entre diversos rankings de opinião. Vencer a impossibilidade de Arrow não parece uma hipótese de simples solução. Muitas emissoras públicas tentam vencer esse paradoxo e agir no limite extremo da opinião consensual. Seu risco, nesse caso, torna-se o inverso do comportamento faccioso: a insi- pidez. A informação morna, politica- mente administrada, despida de ava- liação ou julgamento. Informação que tende a meramente reproduzir o que o mercado já oferta em abundância. Informação que carece precisamente do elemento “curatorial” que define boa parte do papel da impressa, nesta época de fragmentação da informação, e que se esperaria em emissoras des- tinadas a cumprir um papel de senso crítico da comunidade. Em boa medida, é o que sugere a legislação brasileira. Observe-se o Artigo 47 do Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT): “Art. 47. Nenhuma estação de radio- difusão, de propriedade da União, dos Estados, Territórios ou Municípios ou nas quais possuam essas pessoas de direito público maioria de cotas ou ações, poderá ser utilizada para fazer propaganda política ou difundir opini- ões favoráveis ou contrárias a qualquer partido político, seus órgãos, represen- tantes ou candidatos, ressalvado o dis- posto na legislação eleitoral”. 13 A lei brasileira não exige propria- mente que as emissoras públicas ajam com imparcialidade, equilíbrio ou busquem um ponto arquimediano relativo à multiplicidade de pontos de vista existentes na sociedade. A lei proíbe, simplesmente, “difundir opiniões favoráveis ou contrárias” a qualquer partido político. A legisla- ção data de 1962 e parece razoável supor que demande alguma atuali- zação. Mas ela traz um significado. A intuição democrática segundo a qual não cabe a uma emissora pública emitir opinião política. Isto é, não cabe a uma emissora pública cum- prir uma das missões mais elemen- tares da imprensa, a saber, formular a crítica pública ou suporte a gover- nos, fiscalizar e promover o debate de ideias nesse terreno algo difuso que constitui o universo da política. Criação da EBC O mesmo parâmetro, é interessante observar, se repete no texto da Lei 11.652/08, que instituiu os princípios e objetivos dos serviços de radiodifu- são pública e autorizou a criação da EmpresaBrasil deComunicação(EBC). Em seu parágrafo único do Art. 3, a lei é explícita emvetar “qualquer formade proselitismo na programação”. Surge aqui o que se poder chamar de “problema ontológico” da comunica- ção pública. A lei veta que uma emis- sora pública cumpra uma de suas fun- ções mais elementares. Uma forma de tratar a questão é considerar que o CBT, ou mesmo a lei de criação da EBC, sejamdocumentos legais ultra- passados oumal formulados emmui- tos de seus aspectos, e que o desafio da comunicação pública seja efetiva- mente encontrar o “ponto de equilí- brio” capaz de expressar a pluralidade das visões de mundo em uma socie- dade complexa. Nesteponto, ingressamos emumuni- verso bastante vago. Expressar o plu- ralismo social pode significar muitas coisas. Duas atitudes surgembastante comuns no contexto brasileiro. Uma delas parece propor o enfrentamento do problema, exigindo que a emissora pública procure difundir, em sua pro- gramação jornalística, as oposições políticas predominantes no debate públicoe/oupolíticodomomento. Essa parece ser a atitude adotada pelo jor- nalismo da TV Cultura do Estado de São Paulo. Exemplo disso é o seu Jor- nal da Cultura 14 . O risco do modelo é dado pelo tipo de interpretação pro- posta ao debate público. O risco de reduzir, por exemplo, a complexidade do debate a um tipo de dualismo polí- tico ao velho estilo “esquerda xdireita” ou “governo x oposição”. De qualquer forma, trata-se de tentar lidar com o problema do pluralismo. 13 Código Brasileiro de Telecomunicações (1962) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4117.htm 14 O Jornal da Cultura parece explicitamente buscar compor uma bancada de comentaristas com certo equilíbrio de posições. Seu caso mais emblemático parece ser os debates, por vezes estridentes, entre o ex-deputado Airton Soares e o historiador Marco Antonio Villa. A questão é saber se esse tipo de debate efetivamente reflete o “pluralismo social”, e se é mesmo possível encontrar alguma métrica, nesta direção. julgam apropriados. Por vezes, esses valores envolvemagir commais equi- líbrio, oferecendo espaço para múlti- plas visões de mundo. Por vezes não. Em determinadas circunstâncias a expressão de valores exige precisa- mente a tomada de posição. Luis Fer- nando Verissimo traduziu essa ideia em sua conhecida sentença, feita à época da Guerra do Golfo, segundo a qual “quemmantém a objetividade diante de uma cidade bombardeada pode ser um bom jornalista, mas é um péssimo ser humano” 11 . A noção expressa por Verissimo, por óbvio, pode servir como senhapara toda sorte de parcialidade. Mas revela uma con- sideração de valor amplamente con- siderada no universo do jornalismo. O argumento pluralista enfatiza a ideia de que agir de modo mais ou menos parcial faz parte da prática jor- nalística. Grandes publicações globais, do jornal The New York Times , pas- sando pelo francês Le Monde , até a inglesa The Economist , assumem cla- ramente pontos de vista. Há espaço para a diversidade, há pontos de vista contraditórios, mas há uma linha edi- torial que se revela nasmúltiplas esco- lhas editoriais, envolvendo colunis- tas, comentaristas, textos editoriais etc. Não é diferente o caso dos gran- des veículos de comunicação, sejam públicos ou privados, no Brasil 12 . A pergunta relevante, aqui, diz res- peito a como poderia se posicionar uma emissora pública, diante desse desafio de se comportar de modo “mais ou menos parcial”. Que linha Deve-se levar em conta a ideia de que agir de modo mais ou menos parcial faz parte da prática jornalística

RkJQdWJsaXNoZXIy NDQ1MTcx