RJESPM_19

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 27 26 JANEIRO | JUNHO 2017 apenas observar que há um evidente viés político-ideológico em ambas as emissoras, ainda que com inten- sidade distinta e sob o veto da legis- lação vigente. Nosso argumento dirá: veículos de informação tendem a agir dessa maneira, ainda que de modo mati- zado. É possível pensar que o viés ideológico ou o “governismo” de uma emissora pública não se produza dire- tamente como orientação deste ou daquele governo. Ele pode funcionar como um jogo de afinidades eletivas em torno de um governo, dos nomes que ele sugere para integrar um con- selho curador, dos executivos que ele indica, do perfil de jornalistas con- tratados para produzir e apresentar programas, ou mesmo daqueles sele- cionados por concurso, mas que rece- bem mais ou menos oportunidades de atuação. Essas variáveis produ- zem o que se poderia chamar de um “contexto de opinião”. Diremos que é nesse contexto de opinião que se pro- duz, no dia a dia, a orientação polí- tica da emissora. É evidente que sem- pre se poderá dizer, como fez Mar- tin Wolf, anteriormente citado, que uma emissora como a BBC “desagrada tanto a direita como a esquerda”, e que por isso deve estar fazendo um bom jornalismo. É possível, ainda, que tudo isso pareça bastante sub- jetivo. E por certo não representa a regra, no contexto da comunicação pública na América Latina (Bianco, Esch e Moreira, 2012). Vem daí a força do argumento plu- ralista: em vez de imaginar que uma emissora ou sistema de emissoras públicas sejam capazes de sintetizar interesses e preferências difusos da sociedade, talvez seja melhor apos- Em 1980, os países europeus conta- vam com 36 estações de TV estatais e apenas três estações comerciais. Em 1997, eram 46 as emissoras públicas (uma expansão significativa), ainda que o número de emissoras comer- ciais tenha passado de 3 para 59 (Nor- ris, 2000). A expansão das emisso- ras a cabo, via satélite e canais digi- tais não determinou a diminuição do número de emissoras públicas. Mas fez com que a audiência fosse dis- tribuída entre um arco multiforme de emissoras públicas, privadas, de propriedade mista e canais indepen- dentes. Ampliou-se a diversidade e a fragmentação das opções de mídia. Simultaneamente, cresce a pressão sobre os orçamentos da comunicação pública, em parte movida pela crise fiscal, emparte pelo próprio questio- namento do sentido e da prioridade a ser dada ao investimento público em comunicação em uma época de explosão de novas mídias. Emisso- ras públicas são pressionadas a bus- car alternativas de receitas, como fez a BBC inglesa, com a expansão glo- bal de seu braço comercial, a BBC Worldwide, lançada em 1995. Ope- rações como a BBC Entertainment, criada em 2006, levaram a um cres- cente questionamento, por parte da concorrência privada, se a emissora estava saindo de seu foco e “inva- dindo”, em condições especialmente favoráveis, áreas da comunicação e do entretenimento comercial 18 . Isso levou a um interessante para- doxo. De um lado, se espera dina- mismo e busca de novas receitas por parte da comunicação pública. Espera-se que ela cresça em audi- ência, crie produtos para licencia- mento e desenvolva operações comer- ciais, exatamente como faz a BBC, que hoje gera algo como um quarto de sua receita a partir de sua ativi- dade de mercado. De outro, pede- -se que ela não saia de seu “foco”, não ocupe espaços de mercado tra- dicionalmente sob controle de emis- soras comerciais. Opção de risco, na expressão de Peter Burke, na medida em que deixa as emissoras públicas à mercê do orçamento público e não raro “trancadas em uma armadilha temporal, incapazes de se adaptar a novas tecnologias” (Burke, 2009). Há quem enxergue nesse processo uma inevitável perda de qualidade jornalística, quando não de subordi- nação da informação e do debate de ideias à lógica da imagem e do espe- táculo 19 . Posição distinta é defen- dida pela cientista política de Har- vard Pippa Norris. Ela defende que “o novo padrão oferece uma diversi- dade de canais voltados a atender ao rebuscado e ao popular, aos diferen- tes níveis de exigência característi- cos da enorme variedade de grupos 18 Na matéria do Guardian , potenciais concorrentes comerciais da BBC tecem críticas a iniciativas lideradas pela BBC Worldwide, junto ao Comitê de mídia, cultura e esportes da Câmara dos Comuns: https://www.theguardian.com/media/2008/nov/04/bbc-television 19 Esta é, de modo geral, a posição defendida por Mario Vargas Llosa em seu livro A Civilização do Espetáculo (Objetiva, 2013). Repórteres, blogueiros e youtubers podem ter versões distintas dos fatos. Essa é a matéria-prima da liberdade de expressão tar em que certo estado de coisas, a saber, um amplo e multiforme uni- verso de veículos competindo entre si pela audiência e confiança dos cida- dãos possa, no conjunto, cumprirmais adequadamente essa função. Da escassez à abundância Há uma razoável convergência, na lite- ratura histórica, sobre o fato de que os sistemas públicos de comunica- ção surgiram, na primeira metade do século 20, como forma de dar vazão à demanda democrática surgida da expansão urbana, da industrialização crescente e dos avanços da comunica- ção de massas. A oferta de comunica- ção, primeiro pelo rádio, e logo com a televisão, era vista como um meio de acesso equitativo à informação, educa- çãoe entretenimento. Países daEuropa continental, assimcomoJapão, Austrá- lia e Canadá, ergueramum amplo sis- tema de monopólio estatal na produ- ção e difusão televisiva. Não será objeto deste trabalho revi- sar este percurso histórico. É possí- vel imaginar que os sistemas públi- cos de comunicação cumpriram um papel relevante na garantia de acesso à informação nas grandes democra- cias, e seu crescimento tenha ocor- rido pari passu com a afirmação do estado de bem-estar social, que viveu seu apogeu no período do pós-guerra, até os anos 1970. O ponto é que esse quadro foi alte- rado, a partir dos influxos da revo- lução tecnológica ocorrida nas últi- mas quatro décadas, cuja cronolo- gia é bastante conhecida. Omercado de comunicação apresentou uma rápida expansão e diversificação, assistindo-se à passagem de um uni- que integram a sociedade” (Norris, 2000). Alguém pode consumir ape- nas um resumo da informação do dia, de modo rápido, ou consultar o seu tablet para acompanhar os temas que considera relevante. “Se aceitamos a ideia de que o aprendizado político é facilitado, e mesmo condicionado, pelo interesse genuíno das pessoas, então a pluralidade de canais e níveis de informação pode ser considerada bastante saudável para a democra- cia” (idem). Adécada emeia que se passou desde a publicação do texto de Norris ape- nas assistiu ao aprofundamento dessa tendência de multiplicação, diversi- ficação e fragmentação das alternati- vas demídia. Não é objetivo deste tra- balho detalhar os processos de frag- mentação damídia na sociedade atual. Sua direção parece clara: a expansão das oportunidades de acesso a alter- nativas de mídia e a perda de hege- monia por parte dos veículos tradi- cionais. Nos Estados Unidos, havia 104 canais de televisão disponíveis, em uma residência média, 43 a mais do que havia em2000 (Castells, 2009, p. 93). O dado mais sugestivo, entre- tanto, revela a perda gradativa de hegemonia por parte dos canais de maior alcance. Em1980, 40%das resi- dências americanas sintonizaramum dos três canais de notícias líderes de audiência. O número caiu para 18,2% em 2006 (idem, p. 95). É interessante, aqui, observar que o próprio conceito de acesso à tele- visão se torna cada vez menos rele- vante. Relatório produzido pela res- verso de oferta relativamente escasso de informação para umcontextomar- cado pelo paradigma da abundância (Press e Williams, 2010). Por certo se trata de um processo assimétrico, mas uma tendência irreversível de nossa época. Nesse novo contexto, era natural que fossem postas em questão as razões outrora utilizadas para a legitimação dosgrandes sistemaspúblicosdecomu- nicação. É o que observa, em meados dos anos 1900, Eli Noam, professor e pesquisador da Columbia University. E isso antes do surgimento e universa- lização da comunicação digital: Com o objetivo de oferecer programas de maior qualidade, políticas estrutu- rais e regulatórias foram instituídas, tais como serviços de comunicação pública, regulação de programação e restrições de acesso protecionistas. A necessidade dessas políticas para assegurar a quali- dade da oferta de comunicação declina à medida que a distribuição da televisão – devido a mudanças na tecnologia e na organização empresarial – ingressa na esfera das trocas econômicas normais de mercado e assim deixando a esfera da alocação política. Os eleitores-contri- buintesqueofereciamsuporteaosprogra- mas demaior qualidade agora podemser supridos pelomercado, onde sua capaci- dade de consumo gera opções que ante- riormente exigiam a provisão por parte do sistema político. (Noam, 1987, p. 164). Éo que ocorre, de fato, entre as déca- das de 1980 e 1990, de modo global.

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