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36 JANEIRO | JUNHO 2017 REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 37 em 1966, numa célebre capa, a revista time perguntava se Deus estava morto. Emabril deste ano, amesma revista – já não tão influente como há cinco décadas – publicou uma capa que remetia àquela de meio século atrás para indagar se a verdade está morta. Escolhida como a palavra do ano de 2016 pelos Oxford Dictionaries , o termo pós-verdade, carregado de grande carga simbólica, talvez não seja o mais adequado para explicar o fenômeno que enfrentamos. Verdade é uma palavra grandiosa demais, com enorme poder ideológico e metafísico, que há séculos desafia a compreensão humana. No capítulo 18, versículo 38, do Evangelho segundo São João, Pilatos pergunta a Jesus Cristo: “O que é a verdade?”, sem haver registro de resposta. Se Jesus não ousou enfrentar o conceito, talvez jornalistas não devam lidar com ele. Pós-fato possivelmente dê conta melhor do problema. Pode ser apenas uma nuance, mas é menos pretensioso e mais simples tentar distinguir entre fato e ficção do que diferenciar verdade de mentira. É mais possível cons- tatar e comprovar fatos do que verdades. A expressão pós-fato foi criada pelo sociólogo e jornalista Farhad Man- joo, no livro True Enough: Learning to Live in a Post-Fact Society (Suficien- temente Verdadeiro: Como Viver numa Sociedade Pós-Fato, em tradução livre) de 2008, em que ele falava sobre aprender a viver em uma sociedade pós-factual. O hábito vem de longe A existência de não fatos é coisa muito antiga. O historiador Robert Darnton mostra exemplos desde o século 6 a.C., quando o historiador Procópio espa- lhava notícias falsas emRoma sobre o imperador Justiniano e as juntou secre- tamente num volume chamado Anedocta , que só permitiu ser conhecido após a sua morte. Em 1522, o escritor Pietro Aretino tentou manipular a eleição do papa que sucederia Leão X. Não cumpriu seu objetivo, já que o escolhido foi Adriano VI, e não Giulio de Medici, para quem Aretino trabalhava. Are- tino colava suas informações fal- sas sob o busto de um personagem conhecido como Pasquino na Praça Navona, daí derivando pasquimcomo veículo com informações falsas ou sensacionalistas. Depois vieram os canards na França, os tabloides na Inglaterra  e os jornais sensacionalistas em todos os países, inclusive no Brasil.  Ou seja, o que temos atualmente não é nada de novo. O que diferencia o que existe hoje do que houve no passado? A veloci- dade, a simplicidade e o baixo custo para produzir e disseminar falsida- des com capacidade de proliferação muito rápida e abrangência geográ- fica imensa. Mais importante: o não fato é agora divulgado sem nenhum tipo de constrangimento até por pes- soas que ocupam altos postos na hie- rarquia de poder, a começar por che- fes de governo e de Estado. Não que líderes no passado não tivessemmentido. Ao contrário. Pro- Morte e vida da imprensa por carlos eduardo lins da silva O antídoto para a crise de credibilidade é seguir à risca os códigos de conduta e de ética da profissão e ajudar a sociedade a separar o que é fato do que não é vavelmente todo líder político sem- pre mentiu, quase por definição. Faz parte da política mentir, ocul- tar fatos, exagerar. A política sem- pre foi assim e sempre será. É impos- sível fazer política sendo absoluta- mente fiel aos fatos. A diferença é que antes isso se fazia dissimulada- mente e quem mentia negava men- tir. Agora, é despudorado. É preciso considerar também que a falsidade se tornou uma fonte de renda lucrativa. Existe a industria- lização da notícia falsa, com o obje- tivo de fazer dinheiro com anúncios que são alocados por instrumentos regidos por algoritmos que premiam sites commaior visibilidade, acesso, compartilhamento. As mídias sociais, ao contemplarem com localização de anúncios as histórias mais comparti- lhadas, remuneram quem consegue esse resultado. Mas jornalistas não podem se colocar como simples vítimas. A pós-verdade vem no esteio do des- crédito generalizado em relação à imprensa. Não há dúvida de que no mundo inteiro a profissão sofre um processo gradativo de perda de credi- bilidade, e os jornalistas têm parcela de responsabilidade por isso. E não foi só o jornalismo que perdeu cre- dibilidade com o ambiente da inter- net. Várias outras instituições secu- lares também têm sido colocadas em xeque: sindicatos, igrejas, escolas, universidades, empresas, Legislativo, bancos, hotéis, Justiça, publicidade, institutos de pesquisa, a medicina. Descrédito generalizado O conhecimento institucionali- zado como um todo sofreu esse pro- cesso. Tom Nichols, em The Death of Expertise (A Morte da Expertise, em tradução livre), trata do fenômeno. Rejeitar o conhecimento de umexpert é afirmar a autonomia da pessoa. Isso também se aplica ao jornalismo: cada indivíduo agora pode se julgar repór- ter ou editor. A eleição de Donald Trump no ano passado é de uma significância sem precedentes. É bem verdade que ele perdeu no voto popular, mas ganhou a eleição dentro das regras dos Esta- dos Unidos e contra todas as institui- ções. Nenhuma delas o apoiou. Dois ou três jornais no país todo o endos- saram. Ele quase não fez anúncio de TV. Contou com a oposição dos sin- dicatos, deWall Street, das universi- dades, da intelectualidade, das cele- bridades da música e do cinema. Os institutos de pesquisa previram que ele ia perder. Venceu só na base do Twitter, das mídias sociais e das fal- sidades. E a imprensa americana não foi capaz de perceber o que acontecia. Ela deixou de cobrir e prestar aten- ção no que acontecia num grupo demográfico importante no país, que são os brancos pobres. Ignorou-os, não falou dos seus problemas. E foi comeles e entre eles que Trump con- seguiu a sua vitória. Isso acontece em parte por causa das bolhas de informação em que as mídias sociais são absolutamente exponenciais, mas que a imprensa repete. As bolhas de informação em que você só ouve o que você quer ouvir e só fala com quem concorda com você também se reproduz na imprensa. Muitos dos nossos veícu- los só falam para bolhas e só dizem o que os membros da bolha querem ouvir, ignoram problemas de quem

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