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44 JANEIRO | JUNHO 2017 REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 45 antes de Trump. Amenina fora assas- sinada no Brasil em 2014, mas quem se importa com os desmentidos? Nas redes, a mentira sobe de elevador, enquanto a aborrecida correção segue, resfolegante, pelas escadas. Durante a campanha, o odor de sangue transfor- mou os eleitores filipinos emtubarões sedentos de carne, numa escalada que só foi possível graças às redes sociais. Identificar inimigos ocultos e gerar pavor é uma tática antiga de conquis- tar adeptos e converter recalcitrantes. Dos comunistas comedores de crian- cinhas aos horrores do nazismo con- tra os judeus, o século 20 foi farto em campanhasdifamatórias comfinspolí- ticos.Mas as redes aceleraramdrama- ticamente esse processo. O medo da invasão dos imigrantes deu alento ao Brexit e a ameaça de um terrorista em cada esquina foi decisiva para a vitó- ria de Donald Trump. No mundo idealizado das redes, as pessoas se organizariampor autoges- tão, em sintonia perfeita, para com- partilhar conteúdos edificantes. Há, claro, muitos conteúdos educativos, de alto nível e – por que não? – diver- tidos nas redes. Mas imaginar que o trânsito da megalópole poderia se autogerir sem semáforos, placas ou guardas durou apenas até omomento em que as gangues viram uma opor- tunidade e tomaram conta das ruas, valendo-se da ingenuidade dos moto- ristas bonzinhos e daqueles aparente- mente sensatos que acabaram reféns dos bandidos. Efeitos colaterais Naviradadoano,estarrecidopelafábrica de mentiras que ajudou a eleger o pre- sidente da maior potência do planeta, omundo começoua acordar. Aqui e ali, loucuras origináriasdawebpassarama tirar pelomenos umpequeno grupode estudiosos e formadores de opinião da letargiaemrelaçãoaosefeitoscolaterais domundo emredes. Umdesses efeitos tóxicos ocorreuem24dedezembrode 2016, quando o ministro da Defesa do Paquistão, Khawaja Muhammad Asif, tuitou a seguinte frase, a propósito de uma suposta entrevista do ministro da Defesa de Israel na qual ameaça- ria retaliar uma possível intervenção paquistanesa no conflito sírio: “Israel esquece que o Paquistão é uma potên- cia nuclear também”. A ameaça acendeu o alerta laranja em Israel. A declaração do ministro israelense jamais fora feita: a entre- vista que desencadeou a pesada rea- ção paquistanesa era uma invenção do início ao fim, disseminada como notícia verdadeira pela web. Ou seja, duas potências nucleares estiveram à beira de uma crise diplomática por causadeumaentrevista falsaqueenga- nou e indignoumuita gente. A sofisti- cação de algumas montagens de fato torna difícil distinguir a verdade à pri- meira vista, mas bastaria uma checa- gem na fonte original para desmasca- rar os farsantes. Nesse preocupantemundo novo da informação, não é suficiente, porém, ostentar uma marca de credibilidade para abrir as portas do paraíso aos jornalistas. A técnica profissional, como em qualquer outra atividade, precisa evoluir para um estágio mais avançado e profundo e produzir um conteúdo muito diferenciado, dispo- nível até agora em poucos veículos  do planeta. Para atender à demanda por uma qualidade superior, jorna- listas terão de aprender a agir como cirurgiões–demodorápidoepreciso– sobpressões tremendas, desviando-se  de armadilhas ocultas, sem pratica- mente nenhum espaço para o erro. Boa parte da pressão virá diretamente do público, ávido por descobrir o que há de verdade sobre um aconteci- mento ou compreender suas impli- cações, já não mais em uma questão de dias ou semanas, mas de horas ou minutos. O consumidor desse jornalismo cirúrgico poderia ser comparado a alguémque, sesentindodoente, recorre ao Google e digita seus sintomas. O fato é que, no caso de algo potencial- mente sério, ninguémse contenta com os conteúdos espalhados pela inter- net. O paciente procura ummédico e, diante da complexidade, recorre a um especialista, e assim por diante. Um processo similar vai ocorrer no campo da comunicação. Os indi- víduos continuarão sendo contami- nados pela radiação perversa ema- nada pelas notícias falsas – afinal, há e haverámais emais informações dis- torcidas cientificamente pelos char- latães que atuam na web. Mas, como informação de qualidade será umbem valioso, a tendência é que primeiro se busque o refúgio da credibilidade em um jornalismo com menor risco de contágio por interesses políticos e econômicos, ou seja, aqueleproduzido por alguma forma de guilda profes- sional que persegue princípios bási- cos universais, como a busca da ver- dade e a correção de eventuais erros. Em jogo, a reputação Naturalmente, comonahistóriadodiag- nóstico médico, há bons e maus dou- tores, centros de saúde de referência e outros que mereceriam ser fechados. Achar o melhor jornalista e marca jor- nalísticaserácomoidentificarosmelho- resmédicos ehospitais.No futuro, com a sofisticação dos processos de seleção de informação e avaliação de fontes, a reputaçãoseráograndedivisordeáguas entrecurandeirosdanotíciaeprofissio- nais do jornalismo de alto nível. Aindústriada informaçãoestásendo transformada radicalmente pela tec- nologia. No entanto, tecnologia, para esse jornalismo emumnovo patamar, não será umfimemsimesmo, mas um instrumentopara alcançar novas audi- ências, desencavar matérias, intera- gir, providenciar diferentes formas de acesso e apresentação e, assim, gerar novas experiências e níveis de engaja- mento. Emboraprofundamenteconec- tada à tecnologia, a imprensa não está  no ramo de desenvolvimento de  software. O núcleo da atividade se assentará cada vez mais sobre a con- fiança. Esse será obemmais valiosodo futuro–parao sistema econômico, que pode ser devastado por rumores, por governos e políticos, que têm o dever de prevenir a disseminação de infor- mações falsas e preservar a democra- cia, e, naturalmente, para os indiví- duos e a sociedade civilizada. Confiança se tornou tão indispen- sável porque nunca antes o apoca- lipse moral esteve tão próximo – não na forma de códigos nucleares, mas mimetizado como verdade em conte- údos apócrifos. Nos próximos cincoou 20 anos, o mundo será desafiado por uma inesperada sucessão de ameaças desencadeadas pela difusão de infor- mações falsas, seja por robôs progra- mados para espalhar a cizânia ou por bem-intencionados cidadãos semianal- fabetos em termos midiáticos e, por- tanto, presas fáceis do compartilha- mento de sandices. Aomesmo tempo, as redes sociais e suas bolhas deverão prosseguir emsua jornada rumoàpro- gressiva intolerância e alienação do pensamento divergente. Apesar de o mundo começar a se dar conta de que o antídoto para os fakebooks da vida é jornalismo pro- fissional em um patamar superior, a sociedade ainda está longe de acei- tar que esse produto não é barato. Na realidade, para desmontar versões em escala permanente e generalizada, as empresas demídia precisarão demais e mais recursos no momento em que já são profundamente afetadas pela drenagem de verbas canalizadas para o duopólio Google e Facebook. A ironia é que o modelo de negó- cios dos gigantes digitais depende do conteúdo de qualidade, exatamente o que as melhores redações produzem. Somente quando os dois mundos se complementarememummodelohar- mônico e sustentável, capazdemanter o jornalismo vivo, vibrante e em per- manente evolução, os sujeitos maus serão expulsos da cidade pelos xeri- fes da verdade. É bom avisar os ban- didos. Osmocinhos estão ressurgindo para restabelecer a conversação pací- fica e respeitosa, defender a democra- cia e exterminar os fatos alternativos da face da Terra. Mas, antes que seja tarde demais, precisam do apoio da cidade e de seus cidadãos de bem. ■ marcelo rech é presidente do Fórum Mundial de Editores, da Associação Nacional de Jornais e vice-presidente editorial do Grupo RBS.

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