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50 JANEIRO | JUNHO 2017 REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 51 Haja imaginação! Quando a realidade na política é mais estranha do que a ficção, a ficção pode ajudar a entender a realidade por jeff israely palmas para a turma dedicada a desmentir notícias falsas e a expor a verdadeira sujeira que há por aí. Mas David Frum, em um dos textos mais instigantes do jornalismo no começo do governo Trump nos Estados Uni- dos, optou por outra via: a da ficção. Em sua matéria de capa na edição de março da revista The Atlantic – “How to Build an Autocracy” (“Como Criar umaAutocracia”, emtradução livre), a narrativa começa em janeiro de 2021, depois da eleição de Donald Trump para um segundo mandato: O 45º presidente envelheceu visivel- mentenos últimos quatro anos. Durante suas raras aparições empúblico, Trump se apoia firmemente no braço da filha Ivanka. Para sua sorte, não teve de fazer campanha para se reeleger. Seu governo é popular (...). Frum, obviamente, não é o pri- meiro jornalista a lançar mão de um futuro (ou passado) hipotético para expressar um ponto de vista polí- tico. O notável, aqui, é o modo como a ficção foi usada – extensamente – na matéria de capa de uma revista de atualidades. Repórter político respeitado, ex-redator de discursos presidenciais, Frum não parou após  um arroubo inicial de imaginação nem se limitou a uma previsão iso- lada, mas sustentou a narrativa fic- tícia por 14 parágrafos e quase 900 palavras, detalhando o que quatro anos de Trump trouxeram ao mundo de amanhã: aumento de salários e supressão de direitos políticos de minorias, Wikileaks na cola dos democratas e Jeff Bezos vendendo o Washington Post (para um grupo de investidores eslovacos) para resol- ver uma ação antitruste do Departa- mento de Justiça americano contra a Amazon. No reino da fantasia A invenção de umfuturo sombrio fun- ciona como ummecanismo narrativo a serviço de uma análise jornalística profunda. Frum primeiro estabelece as bases fictícias para uma reversão de liberdades democráticas antes de tra- zer o texto de volta para o presente e, então, explicar o que está em jogo nos próximos quatro anos. Na vida real. Em meio à avalanche de aconte- cimentos que “jamais poderiam ter sido previstos” e a uma celebridade de reality show ditando o discurso público, outros veículos de imprensa sérios também têm se aventurado no reino da ficção. No dia das eleições nos Estados Unidos, em novembro de 2016, o site Quartz publicou uma reportagem de “bastidores” inven- tada mostrando o que poderia acon- tecer quando Trump e Putin forem à cúpula do G8 em Vancouver em 2018. A Economist agora tem uma edição anual, chamada The World If ,  que aborda uma série de assuntos  – reescrevendo opassado ouprevendo o futuro. O francês Libération tentou imaginar como seria a França depois de uma eventual eleição em maio do candidato do Partido Socialista (pos- sibilidade que, com a eleição do can- didato centrista, Emmanuel Macron, mostrou-se uma grande fantasia). Nomeu caso, como editor do site de notícias internacionaisWorldcrunch, a ficção chegou emmarço do mesmo jeito que chegam muitas ideias para matérias. A reunião de pauta diária foi dominada pelo drama que se desen- rolava na campanha eleitoral fran- cesa e a possibilidade de que a can- didata de extrema direita Marine Le Pen vencesse: “Já imaginou quando ela encontrasse o Trump?”, pergun- tou Marc Alves, o especialista em política francesa do site. Oui! Pode tocar! O imaginado encontro entre os dois presidentes no dia 20 demaio de 2017 em um forte na costa do Medi- terrâneo teve direito a personagens chamativos da família de ambos e a ameaças contra adversários comuns no mundo todo – ingredientes indis- pensáveis de uma boa trama, tem- perados com uma pitada de geopo- lítica verídica. Desde então, decidimos transfor- mar a ideia em algo fixo. Já falamos sobre a mudança de regime no Irã e sobre Mark Zuckerberg cooperando com censores na China. Há pouco, imaginamos uma exclusiva dos bas- tidores do divórcio do casal Trump. Para nós, o formato é liberador: ao contrário da Economist e da Atlantic , não derrubamos a quarta parede. Em nossos textos, não voltamos nunca ao presente. O formato permite que exploremos temas em geral pouco conhecidos comuma prosa instigante. Mas o uso da ficção impõe, por necessidade, grandes perguntas a qualquer indivíduo que trabalhe com jornalismo. Será que imaginar cená- rios futuros distrai o leitor (e o jorna- lista) do problema real? A realidade imaginada vai ajudar a aprofundar o raciocínio? Ou é mero escapismo? Campanha surreal Oescritor americanoThomasMallon, autor de vários romances políticos focados em personagens da história contemporânea, diz que a abordagem propicia “uma espécie de intimidade especulativa” que pode aproximar o leitor dos acontecimentos reais. “Mas tento não atribuir muito poder ao gênero”, disse ele por e-mail. “Acho que o leitor não deve esquecer: fic- ção histórica é sempre ficção, nunca história.” Isso posto, durante o torvelinho da brutal e surreal campanha do ano passado, umraromomento de clareza veio de uma matéria na revista The New Yorker na qual Mallon mostrou como a disputa presidencial podia funcionar como um romance. Mallon não tinha dúvida de que o personagem principal seria Hillary Clinton, e não Trump, pela profundidade de suas batalhas internas e o lado shakespe- areano/nixoniano da coisa. O republicano, afirmouMallon no artigo, é “raso”, sempre chocante e nunca surpreendente, o que não  é bom material para um persona- gem literário. Emoutra frente, bemdistinta, o jor- nalismo tambémprecisa administrar as tensões entre choque e surpresa. Do 11 de Setembro à crise financeira, da vitória do Brexit à eleição de Trump, a imprensa esteve lá, registrando tudo. Mas, em cada caso desses, como bem observaram alguns, a mídia pode ter padecido de certa “falta de imagina- ção”. Mesmo que não leve à verdade, experimentos com ficção no noticiá- rio podem nos ajudar a questionar as mentiras que não paramos de contar a nós mesmos. ■ jeff israely foi correspondente da revista Time em Roma e Paris. Atualmente, é editor do site Worldcrunch, que ajudou a fundar. Seu Twitter é @jeffisraely. CRÉDITO DE FOTO Texto publicado no site www. cjr.org em 7 de abril de 2017. NICOLAS ASFOURI/AFP/GETTY IMAGES O romance 1984 , de George Orwell, ajuda a compreender a história moderna

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