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4 JANEIRO | JUNHO 2017 REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 5 pravda , em russo, quer dizer “a verdade”. Em 1917, Pravda era o jornalzinho do Partido Bolchevique. Promo- vido a órgão oficial daUnião Soviética, atravessou o século 20 promovendo umamentira atrás da outra. Você até pode alegar queno Pravda ninguémnunca fez jornalismo.Mesmo assim, de qualquer modo, não poderá argumentar que as palavras “jornal” e “verdade” guardem alguma proximi- dade de sentido. Na melhor das hipóteses, um jornal nos dá uma notícia, ou duas. Se não foremmentirosas, delibe- rada ou inadvertidamente, já estamos no lucro. Lippmann já avisava: “Ahipótese, queme parece amais fértil, é que notícia e verdade não apenas não são a mesma coisa como precisam estar clara- mente separadas. A função da notícia é sinalizar um evento. A função da verdade é trazer luz para fatos ocultos, relacioná-los a outros, e traçar um retrato da realidade a partir do qual os homens possam atuar”. Emesmo aí já estamos diante de um entendimento exa- geradamente esperançoso da verdade. Francamente. Essa história de “iluminar” fatos ocultos é bastante problemá- tica. Até para os iluministas, aos quais devemos as ideias fundadoras da imprensa, já era muito complicado. Quando muito, o jornalismo pode pretender estimular um ambiente de debate público em que os fatos de inte- resse geral fiquemmais acessíveis à inteligência dos cida- dãos. Se registrar os fatos, apenas isso, “com tudo que é insolvente e provisório” (na síntese pouco jornalística de Carlos Penna Filho), já terá prestado umexcelente serviço à sociedade. Arti- gos de opinião ajudam, assimcomo as análises menos indigentes e as inter- pretações minimamente fundamen- tadas. Com esse conjunto, um jornal honesto até pode contribuir para “tra- zer luz para fatos ocultos, relacioná- -los a outros”, mas “a verdade”, bem, “a verdade”, na verdade, não temquase nada a ver com isso. Ademais, comoestanãoéuma revista de filosofia e tambémnão éuma revista religiosa, sentimo-nos autorizados a deixar essa conversa para lá. Fôs- semos seguir com ela, não teríamos tempo nem espaço para explicar que o nosso tema, nesta edição, não tem também nada a ver com “a verdade”, mas apenas com a “pós-verdade”, ou, pior, com a ressaca dessa overdose de “pós-verdade” que nos entorpece há alguns anos. Em setembro de 2016, o semanário inglês The Econo- mist saiu com uma capa sobre a “pós-verdade”, e até ali tudo bem. No final domesmo ano, o termo “pós-verdade” foi declarado “a palavra do ano” pelo Dicionário Oxford , como um qualificativo de “um ambiente em que os fatos objetivos têm menos peso do que apelos emocionais ou crenças pessoais em formar a opinião pública”. A questão, como se nota, não é bem “a verdade” – filosófica, onto- lógica, metafísica, religiosa etc. –, mas os fatos. Esse é o ponto. Estaríamos vivendo uma era em que os fatos dei- xaramde lastrear as condutas e as ações humanas. Se isso for mesmo verdade, quer dizer, se o pós-fato é mesmo um fato, a política deixa de ser política – vira uma obra cole- tiva de ficção, num grau superior ao que pudemos teste- munhar em eras anteriores. As redes sociais agravaram o quadro geral. Nas fibras nervosas das ciberesferas, as máquinas engolfam a opi- nião pública com ofertas industriais de fake news , que se converteramnumnegócio altamente lucrativo. Para dizer a verdade, a civilização não anda bem, ainda que esta revista ainda esteja aqui, no front. E, enquanto é tempo, julgamos que não seria de todo ocioso dedicar as páginas que nos restam a uma reflexão apressada sobre os fatos que nos escorrem pelos dedos e as verdades que, de longe, pare- cem rir do reportariado atônito. ■ Da pós-verdade à pós-imprensa EDITORIAL “Por umdólar, vocêmal consegue comprar umpunhado de balas de goma, mas por um dólar ou menos [o que se pagava por um exemplar de um bom diário] as pessoas esperamque a realidade e as representações da verdade lhe caiam de presente sobre o colo.” walter lippmann, em Public Opinion, de 1922 SAUDADE DOS TIPOS MÓVEIS A imagem que ilustra a capa desta edição foi especialmente produzida na Oficina Tipográfica São Paulo, uma ONG dedicada à preservação da cultura gráfica nacional. Em destaque, as etapas de elaboração manual da peça tipográfica, em técnica amplamente utilizada na imprensa até a informatização das redações. Assim como era lá no século 15, nos tempos de Johannes Gutenberg, agora ainda tem sido, mas talvez não seja por muitos séculos mais. FOTOS: ELIANE STEPHAN
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