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72 JANEIRO | JUNHO 2017 REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 73 sistemasmais eficientes e lógicos pos- síveis, definindo o “melhor” caminho para usuários ou consumidores. Qual- quer coisa que interrompa essa pro- gressão deve ser eliminada ou “corri- gida”. Na engenharia, sempre existe uma resposta correta, enquanto no jornalismo só há novas questões. Logo após Omidyar fundar a First LookMedia, ele realizou uma série de encontros com jornalistas, acadêmi- cos e especialistas em tecnologia para pensar como deveria ser esse novo modelo de organização jornalística. Durante uma das reuniões no sub- solo de seu hotel em Laguna Beach, na Califórnia, a discussão esquentou quando o assunto tocou a questão de como e onde os especialistas em tec- nologia deveriam agir. Certamente no centro da redação, alguns de nós diziam, porque o ideal seria um pro- cesso jornalístico repensado e plane- jado para se beneficiar de umconheci- mento aprofundado da tecnologia que está por trás dele. “Mas engenheiros e jornalistas são tão diferentes, com certeza isso não vai funcionar”, foi a resposta que ouvimos. Existem muitos tipos de especia- listas em tecnologia emuitos tipos de jornalistas e vários deles têmcaracte- rísticas em comum. Os melhores jor- nalistas de dados muitas vezes são especialistas de alto gabarito em tec- nologia. Desenvolvedoresmais criati- vos podem fazer muito mais na hora de criar novas tecnologias para o jor- nalismo do que alguém cujas princi- pais habilidades sejam escrever ou produzir vídeos. Namaioria das reda- ções, a antiga hostilidade dos jornalis- tas contra os “nerds” se transformou em admiração e hoje há um enten- dimento de que os jornalistas com as habilidades certas têm a chave da sobrevivência e da qualidade da área. A diversidade de pensamento sobre como abordar matérias ou proble- mas mais complexos na organiza- ção da nossa cobertura e das nossas informações com certeza melhorou o jornalismo. Certa vez eu caminhava no andar onde trabalhava a equipe da área digi- tal do Guardian , na época em que eu era editora sênior do jornal, e vi um grupo de especialistas de uma empresa de engenharia sentados em círculo, passando uma galinha de bor- racha de um para o outro. Os enge- nheiros estavam trabalhando em um projeto grande, e aquele ritual da gali- nha era esquisitíssimo. Perguntei a uma colega o que era aquilo. Ela res- pondeu: “A galinha representa a pala- vra. Quando umdos desenvolvedores está comela, deve descrever o que fez no dia e dar a sua opinião sobre o tra- balho dos outros, senão eles podem acabar deixando de nos contar algum detalhe importante”. A várias mãos Em uma organização jornalística, a ideia de que a equipe precisaria de uma galinha de borracha como apoio para se expressar era absurda. Jornalis- tas davama sua opinião o tempo todo, especialmente quando o assunto era o universo digital, algumas vezes com poucas provas – ou prova nenhuma. Ao trabalhar entre equipes de jornalis- tas e desenvolvedores, era fácil enten- der onde havia diferenças de cultura e visãodemundo.Osespecialistasdepen- dem de certeza e precisão, enquanto os jornalistas se sentem à vontade na incerteza e na ambiguidade. O que eu considerava umgolpe demestre como editora – lançar um site em pouquís- simo tempo com tecnologia de outra empresa –deixava os desenvolvedores aflitos. Eles diziam: “A gente não deve tentar fazer isso de novo nuncamais”. O que eu achava que era uma vitória tática, eles consideravam um desas- tre estratégico. Oplano deles teria um “custo técnico”muitomenor no longo de perto as maiores e mais rápidas entre as companhias das redes sociais. Estreantes nomercado do jornalismo, como o BuzzFeed, estabeleceram sua marca e seumodelodenegócioaoficar omaispróximopossível dodesenvolvi- mento de empresas como o Facebook. Outras, como a Vox, concentraram- -se no desenvolvimento de sua pró- pria tecnologia, tão boa quanto qual- quer produto do Vale do Silício. Uma nova categorização dos postos de tra- balhodas redações em“equipesdepro- duto” é parte da resposta a esse cho- que cultural. Jornalistas de uma gera- çãoespecíficadetestamapalavra “pro- duto”, com suas implicações aberta- mente comerciais, ou a ideia de que o jornalismopossa serumproduto, enão umprocesso; mas, nesse conflito ideo- lógico, parece que a tecnologia vence até mesmo no campo da linguagem. Equipes de produto, editores de redes sociais e seções de curadoria estão cada vez mais presentes em todas as redações. O choque cultu- ral entre essas entidades e as atribui- ções editoriais tradicionais pode estar presente até hoje, mas não é mais o principal ponto de conflito. O surgi- mento de empresas que atuam como plataformas temumefeito particular- mente forte nas equipes de produto e de aplicativos das organizações jorna- lísticas. Facebook, Google, Snapchat e Apple criarammaneiras impressio- nantes de distribuição de reportagens para as organizações jornalísticas. No caso do Facebook, existem formas novas de apurar e contar essas histó- rias. Grandes equipes de desenvolve- dores trabalhamemsistemas de vídeo e fotografias que um jornal ou uma emissora sozinha teria muita dificul- dade para criar, pormais que quisesse. O Facebook Live, que, nas palavras de Mark Zuckerberg, é “uma câmera da TV em seu bolso”, pode transmitir vídeos ao vivo de qualquer pessoa que tenha uma conta no Facebook e uma conexão rápida o bastante de internet. Quando perguntaram a Simo na ONA se o Facebook seria de fato uma empresa de comunicação, ela foi mais comedida que seu chefe. “Nós temos umpapel muito importante na indústria da comunicação e levamos essa responsabilidade muito a sério”, garantiu. “Arazãoparanos considerar- mos primeiramente uma empresa de tecnologia é porque nós não criamos conteúdo e nós não temos um negó- ciode curadoria de temas de interesse. Nosso foco é levar a todos os usuários o que eles queremver em seus feeds.” Criação sob ameaça Aquestão que não quer calar namaio- ria das redações é: quanto investir na própria equipe de desenvolvimento versus usar as ferramentas desen- volvidas para eles pelo Facebook e o Google? É praticamente impossível fazer com que executivos da comu- nicação falem sobre isso, pois muitos deles já estão envolvidos em acordos com redes sociais ou mecanismos de busca, mas a preocupação dos mais cautelosos é óbvia. “Se não tomar- mos cuidado, os únicos desenvolve- dores comquemnós vamos trabalhar serão aqueles que podem integrar o que quer que as organizações jornalís- ticas estejam fazendo às plataformas deles, o desenvolvimento e a criação independentes estarão ameaçados”, explicou um executivo. Outro dirigente foi além: “O que as empresas de tecnologia fizeram até hoje alémde piorar o jornalismo? Alguns anos atrás, infográficos inte- rativos supercriativos estavam entre os campeões de acesso nos sites de notícias. Você não vêmais essa criati- vidade porque isso não roda no Face- book Instant Articles”. Sem uma visão independente e bem-informada sobre omodo de tra- balho das grandes empresas de tec- nologia, as organizações jornalísticas podemacabar aceitando semcontes- tar a ideia de que elas não têm mais espaço para criar os próprios forma- tos e ferramentas. Uma defesa inde- pendente, baseada na criatividade das próprias tecnologias, é umdos meios mais poderosos para que o jornalismo mantenha a relevância. Foi-se o tempo em que recursos focados em tecnologia significavam menos repórteres na redação. Essa escolha agora revela o verdadeiro sig- nificado: ummau negócio. Conforme o jornalismo e a tecnologia conver- gem, a questão não é ensinar progra- mação aos jornalistas, mas transfor- mar o jornalismo em linguagem de programação. ■ emily bell é diretora do Tow Center for Digital Journalism na Columbia Journalism School. Na engenharia, sempre existe uma resposta correta, enquanto na imprensa só há novas questões prazo, enquanto a minha estratégia levou dois anos e meio a menos para ser concluída. Essa diferença cultural estava escrita em todas as páginas do rela- tório de inovação do New York Times de 2014, que acabou ficando famoso depois que vazou. O tom de frustra- ção era óbvio na maioria das vezes. Um membro da redação escreveu o seguinte: “Temos uma tendência de deslocar recursos para projetos de uso único e trabalhar nas soluções de uso único necessárias para criá-los e acabamos deixando de lado o trabalho menos glamouroso de criar ferramen- tas, templates e soluções permanentes que tenham mais impacto e possam deixar a reportagemaindamelhor ao poupar o tempo dos nossos jornalis- tas do meio digital. Nós subestima- mos muito a replicabilidade”. Mark Hansen, que comanda o Brown Institute for Media Innova- tion, divide-se entre aColumbia Jour- nalismSchool e a Faculdade de Enge- nharia de Stanford. Hansen vê uma oportunidade enorme para transfor- mar o jornalismo emum campo real- mente interdisciplinar. “Dizer que jor- nalistas e especialistas em tecnologia ocupamespaços diferentes – e sempre vão ocupar – denota umpensamento preguiçoso. Essas caricaturas não aju- dam. Os engenheiros são encoraja- dos a pensar diferente, assim como os jornalistas. Mas muitos engenhei- ros pensam como jornalistas, e vice- -versa”, declara Hansen. Hoje, a inovação no jornalismo muitas vezes significa acompanhar Texto publicado na edição de outono/inverno de 2016 da CJR .
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