Revista de Jornalismo ESPM 21

10 janeiro | junho 2018 revista de jornalismo ESPM | cJR 11 direto de columbia por michael schudson Desde o primeiro processo contra a Newsweek , funcionárias de veículos de informação lutam na Justiça, e questões como a defasagem salarial ainda dão o que falar Entre boas e más notícias a newsweek foi a primeira das gran- des revistas americanas a ser proces- sada por trabalhadoras por discrimi- nação sexual – e nem faz tanto tempo assim. Foi em1970. AJustiçadeuganho de causa àsmulheresnabriga comuma publicação que, até ali, só contratava homens para a função de repórter e só mulheres para a de pesquisadora – um papel basicamente limitado a checar a veracidade das informações apuradas pelos jornalistas. Por uma dessas coincidências do destino, a ação foi movida na mesma semana em que a capa da revista estampava o título “Women inRevolt” (“A revolta das mulheres”, em tradu- ção livre), chamando a atenção para uma reportagem sobre o crescente movimento feminista. Como não tinha nenhuma repórter, a Newsweek con- tratouHelenDudar, do NewYork Post , para fazer amatéria. Outrosmeios não deixaram passar a ironia da situação: umjornal à época importante, o News- day , fez piada: “Editors File Story; Girls File Complaint” (“Editores dão matéria. Moças dão queixa”, em tra- dução livre). O NewYork Times se saiu com o seguinte título: “As Newsweek Says, Women Are in Revolt, Even on Newsweek ” (“Como diz a Newsweek , há uma revolta das mulheres. Até na Newsweek ”, emtradução livre). O New York Daily News abriu sua matéria comuma frase impublicável em2018: “Quarenta e seis mulheres na redação da Newsweek , a maioria delas jovem e bonita, anunciaram hoje que esta- vam processando a revista”. Mesmo coma vitória dasmulheres, não mudoumuita coisa na revista até 1973, quando houve um segundo pro- cesso na Justiça. LynnPovich, uma das funcionárias quemoveramtanto a pri- meira quanto a segunda ação, virou, em 1975, a primeira mulher a ocupar o cargo de repórter sênior na revista. Retrato revelador Povich acabou escrevendo um livro de memórias sobre seus tempos de Newsweek , onde trabalhou de 1965 a 1991: The Good Girls Revolt (Public Affairs Books), lançado em 2012 e focado na briga na Justiça. O livro trata da discriminação no trabalho e do fatode que uma trabalhadora ganha menos e tem menos oportunidades de subir na carreira do que colegas homens. Embora nenhuma das duas ações tenha sido por assédio sexual, a obra de Povich pinta um retrato reve- lador da atmosfera sexual e das rela- ções de gênero nos meios de comuni- cação da época. Povich lembra que, na Newsweek , muitos dos homens viam as colegas “como alguém com quem gostariamde trair a esposa – emuitas mulheres tinhamprazer emsatisfazer [essa vontade] ”. Muitos dos homens que moravam longe da redação fica- vam em um hotel perto do trabalho depois do “pescoção” da sexta-feira, algobemconveniente para quemman- tinha casos. E, aliás, nemera preciso ir a umhotel: na sede da Newsweek havia duas salas designadas de “enferma- ria”, cada qual com uma cama de sol- teiro. Em tese, eram para ser usadas quando alguémnão estava se sentindo bem.Mas, como viviamàsmoscas, era comum serem usadas por repórteres para “tirar uma soneca” por uma hora ou duas – comalguma funcionária. Às vezes, o caso era entre um jornalista e a pesquisadora que trabalhava para ele. Sexocomconsentimentoeracomum. Povich lembra que a redação era um lugar cheiode gentena casados 20, que a “pílula” anticoncepcional começara a se alastrar em 1960 e que a “revolu- ção sexual” daquela década estava “a toda”.Havia “muitos casos entre repór- teres, editores e pesquisadoras”, conta. Qualquer papo informal era ocasião para paquera – “flertar fazia parte da coisa”, relatou umamulher. Já Povich lembrou: “As mulheres se sentiam com tanto direito ao sexo quanto os homens – e nossas minissaias e blusi- nhas às vezes sem sutiã aumentavam ainda mais a temperatura”. Mulheres e homens riamde comen- tários, tiradas e piadas sugestivas e sexistas. Era tudo visto como parte do dia a dia no trabalho. Havia, ainda, observações mais específicas que, olhando hoje, provavelmente seriam percebidas como a semente de um ambiente de trabalho hostil. Um edi- tor contou aPovichque quando foi tra- balhar na Newsweek , em 1962, ouvira o seguinte do chefe: “A melhor coisa desse trabalho é poder transar comas pesquisadoras”. Dois repórteres da edi- toria de esportes ficavamplantados no corredor “avaliando, para quem qui- sesse ouvir, os atributos físicos das mulheres que passavam ali”. Ao con- vidar uma mulher para um drinque, o homem ia logo dizendo que acei- tar faria bem à carreira dela. Povich rememora o casode umalto editor que ficava plantado em frente ao edifício de uma mulher que trabalhava para ele à espera de que ela chegasse, lite- ralmente perseguindo a moça. Não sei se o que Povich revela sobre a Newsweek se repetia em outros veí- culos da época, mas o modelo geral de relações pessoais à “MadMen” na imprensanova-iorquinaprovavelmente vinha com todo um conjunto de con- dutas correlatas. Doismeses depois de a Newsweek ser processada, uma ação de discriminação no trabalho contra Time , Life , Fortune e Sports Illustrated foi movida – ação que foi monitorada pela Comissão de Direitos Humanos, umórgãomunicipal. Uma açãomovida por trabalhadoras contra o New York Times , iniciada aproximadamente na mesma época, se arrastou até 1978. Longa e acrimoniosa, a briga foi, de novo, decidida em favor das mulhe- res, mas deixou um gosto amargo em todos os envolvidos. Movimento mundial Diante disso tudo, as revelações do #MeToo, movimento que hoje ganha força mundo afora, não são grande surpresa – salvo que assédio sexual, agressão sexual e estupro são muito mais pessoais, violentos e traumáti- cos do que a discriminação no traba- lho. E vale a pena frisar que a chama que deflagrou o #MeToo foi acesa por um jornal: o New York Times despen- deu um mês num trabalho de apura- ção de denúncias de assédio sexual e conduta predatória contra o produtor de cinemaHarveyWeinstein. Também houve uma investigação paralela da revista NewYorker . Alémdasmulheres que se dispuseram a relatar publica- mente os supostos abusos sofridos nas mãos deWeinstein, veio à luz o relato de várias outras quehaviamentradona Justiça contra o produtor pormotivos parecidos ao longo dos anos. Para se livrar do problema, Weinstein fizera acordos extrajudiciais envolvendo o pagamento de indenizações e cláu- sulas de confidencialidade. Essas ações na Justiça produziram pouco efeito além de rumores. No final, o boca a boca se provou muito mais eficaz do que o recurso à Justiça. A onda que teve início comacusações contra um figurão deHollywood logo estava produzindo denúncias contra assediadores sexuais emsérie na polí- tica, nomeio acadêmico, na imprensa, no mundo gastronômico e em outras esferas. O que começou nos Estados Unidos se alastrou pelomundo. Oque teve início com uma cobertura inves- tigativa demeses realizada por meios de comunicação da “velha guarda” culminou com mulheres se organi- zando e compartilhando suas histó- rias digitalmente. Adesigualdade salarial segue sendo tanto uma injustiça econômica como um símbolo do desrespeito social contra a mulher (há uma briga feia em curso na BBC sobre a defasagem da remuneração das mulheres na empresa). Tudo isso serve para lem- brar àqueles de nós que são homens, e não mulheres, que o mero ato de pisar no local de trabalho já é uma experiência diferente dependendo do gênero. Christiane Amanpour, da CNN, comenta na edição impressa da CJR sobre ameaças àmídia, deste iní- cio de ano, um estudo sobre a violên- cia física contramulheres jornalistas. De acordo coma pesquisa, metade das mulheres que relataram ter sido víti- mas de violência disse que isso ocor- rera “em campo” –mas 18%disseram que foi “na empresa”. A boa notícia aqui é que o empe- nho de jornalistas teve papel crucial para lançar luz sobre o tema do assé- dio sexual no trabalho e deflagrar um movimento social mundial. Amá notí- cia, obviamente, é que comcerteza há mais más notícias por vir. ■ michael schudson é professor de jornalismo e sociologia (docente-associado) na Columbia University. Publicou, entre outros livros, The Rise of the Right to Know (A Escalada do Direito ao Conhecimento) e, com C.W. Anderson e Leonard Downie Jr., The News Media: What Everyone Needs to Know (A Imprensa: O Que Todos Precisam Saber).

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