Revista de Jornalismo ESPM 21
30 JANEIRO | JUNHO 2018 O que fazer? Ignorar poderia significar retaliação e até demissão. Ficar comas piores pautas, não assinar as repor- tagens, perder oportunidades de viagens, de fazer entre- vistas relevantes. Ser dispensada por ummotivo qualquer. Ter a ascensão profissional podada. Ceder era impensável. Ela tinha nojo daquele compor- tamento da chefia. O sujeito era asqueroso, bebia demais (especialmente às sextas-feiras), se achava o rei da cocada. Alardeava ser entendido emvários assuntos complicados, ter viajado para lugares exóticos, merecer prestígio total da direção geral. Um intocável. Denunciar a deixariamarcada. Para a família, ela pode- ria ser vista como alguém que deu chance, que provocou um homem, uma vagabunda, simples assim. O marido (ela era casada) poderia reagir violentamente – contra o chefe. Para o mercado de trabalho, no qual ela recente- mente havia conquistado ummicrolugar, seria carimbada como uma ovelha negra, mentirosa, despeitada, frustrada. Como alguém incompetente que prefere culpar os outros pelos seus fracassos profissionais – e ainda por cima atin- gir o chefe e a empresa. Não tinha como comprovar, não guardara os e-mails. Seria a sua palavra contra a dele, o poderoso chefe. Ela não seria mais contratada por outras redações. Amarga- ria o desemprego e o ostracismo. Talvez tivesse que vol- tar para o interior, para a casa da família. Talvez a histó- ria acabasse com o seu casamento. A ira do marido, que se sentiria humilhado, traído, também poderia se voltar contra ela. Teve medo, angústia, revolta. Uma colega passou por momentos mais dramáticos. No final de um dia, se viu encurralada na sala do chefe. Porta trancada. Chorando, ela conseguiu escapar. Trau- matizada, teve que deixar o trabalho naquela redação. Outra rejeitou o chefe e foi expelida para uma ilha de gelo profissional e humilhações. Caiu emdepressão e pre- cisou de atendimentomédico. Todas elas seguemadiante, mas carregam cicatrizes amargas, um sentimento de que suas carreiras sofreram reviravoltas injustas por conta de comportamentos canalhas de suas chefias. O assédio sexual é uma questãomuitomais de poder do que de sexo – é preciso dizer isso logo de início. Sobre respeito e desrespeito Quando fui procurada para escrever este texto não ima- ginava que pudesse escutar histórias assim. Trabalhei em redações de jornais por quarenta anos e não tenho epi- sódio pessoal de assédio para relatar. Homens e mulhe- res foram meus chefes – na maior parte do tempo res- pondi a comandomasculino. Tivemos diferenças, discus- sões, embates – normais num ambiente de trabalho em que a produção de conteúdo é fruto de interpretações, visões conflitantes de mundo, críticas e autocríticas per- manentes. Fui sempre tratada com respeito – ainda que a curva do calcanhar, o comprimento do vestido , as pernas roliças, o corte de cabelo. Elo- gios a pedaços do seu corpo começaram a chegar pelo e-mail da jovem estagiária. Eram enviados pelo chefe, que intercalava as mensagens picantes com ordens de pauta. Mais tarde viriam o con- vite para jantar, para ir até a casa dele, para uma conversa a dois. Assédio é sobre poder; combate é coletivo por eleonora de lucena Sociedades como a brasileira naturalizam as investidas sexuais, e por isso é preciso tomar posição e estimular ações conjuntas para coibir os abusos ENQUANTO ISSO, NO BRASIL ... REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 31 possa ter achado que sofri injustiças. É do jogo. Assédio sexual, nunca. É certo que quase sempre atuei em grandes veículos, redações populosas, trabalho intenso. Sou parte domovi- mento de ascensão feminina no jornalismo, iniciado a par- tir dos anos 1970. Até a primeira metade do século 20, a labuta em jornal era feita basicamente por homens. Mui- tos eramadvogados, funcionários públicos. Trabalhavam meio período, cozinhando textos vindos de fora, de agên- cias, de governos. Nos meus primeiros empregos convivi com personagens assim, que se desdobravam em múlti- plos empregos – sem falar nos policiais que faziam bicos em redações durante a ditadura militar. SamuelWainer (1910-1980), o lendário criador da Última Hora , deu início à profissionalização das redações, orga- nizando salários e jornadas. A urbanização e a escolariza- ção deslancharam a partir dos anos 1950, e o jornalismo acompanhou o crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho. Depois, em 1969, a regulamentação da profissão de jor- nalista, exigindo diploma universitário específico (o que não vigora mais hoje), deu mais impulso à entrada femi- nina nas redações. As mulheres agora faziam faculdade, ganhavamqualificação e disputavamespaço; muitasmili- tavam no combate à ditadura. Alzira Alves de Abreu e Dora Rocha relataram esse fenômeno em Elas Ocuparam as Redações (FGV Editora, 2006). Antes disso, umas poucas pioneiras enfrentaram pre- conceito dentro e fora das redações. Ana Arruda Callado conta, nesse livro, como foi duro se impor a colegas no ambiente de trabalho francamentemasculino entre os anos 1950 e 1960. Na reportagem, o problema era ainda maior. Uma vez, durante uma cobertura emBelémdo Pará, foi orientada a procurar o assessor de imprensa da prefeitura para buscar dados. “De noite ele ficou indignado, porque quis me agarrar à força e eu disse: ‘Que é isso?’. Ele: ‘Ah, pensa que eu engoli essa história de jornalista? Mulher viajando sozinha, eu sei bem o que é’. Coisa louca, não é? Era esse tempo”, relata Callado. Pioneiras na profissão Aos poucos, as mulheres foram abrindo espaço na socie- dade e no jornalismo. O rompimento de barreiras e pre- conceitos ocorria emvárias partes domundo. NanRobert- son (1926-2009), premiada jornalista americana, recupe- rou a saga feminina para obter espaço no ambiente de tra- balho com The Girls in the Balcony: Women, Men and The New York Times (Random House, 1992). Até os anos 1960, por exemplo, elas não podiam com- partilhar o espaço com seus colegas homens nas coleti- vas de imprensa do National Press Club. Ficavam restri- tas a um apertado balcão, de onde deveriam acompanhar os eventos. Com luta, conquistaram lugar nas ruas, nos gabinetes e nas redações. Entraramna Justiça pormelho- res salários e vagas. Não queriammais cobrir decoração, jardinagem, culinária. Quando entrei na faculdade de jornalismo da Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1976, essasmudanças fundamentais já estavamemcurso.Minha primeira chefe, ainda nos anos 1970, já foi uma mulher. Mas as áreas de esportes, polícia e economia ainda eram refratárias ao sexo feminino. As repórteres faziam o trabalho de cavar boas histó- rias na cidade. Passavam boa parte do dia fora e volta- vam esbaforidas – como eu – para preencher muitas lau-
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