Revista de Jornalismo ESPM 21

32 JANEIRO | JUNHO 2018 das até o horário de fechamento. Naquele tempo, o piso salarial que recebíamos era equivalente à remuneração de um motorista de ônibus em Porto Alegre. Os homens que ocupavam posições em áreas mais nobres do jornal recebiammais. No final daquela década, homens emulhe- res estiveram juntos em campanhas trabalhistas, mani- festações, greves. Comecei a trabalhar na Folha de S.Paulo , como freelan- cer, em 1983, quando estava esperando minha segunda filha. Por causa da gravidez, só fui contratada no ano seguinte, como redatora de economia. O saudoso Aloysio Biondi logo me promoveu a editora-assistente. Em 1988 assumi a editoria e, em 1992, passei a ser secretária de redação. De 2000 a 2010 fui editora-executiva. Ao todo, fiquei mais de 20 anos em cargos de chefia e não soube de casos de assédio na Folha . Medo e submissão Numa sociedade capitalista emachista, como a brasileira, o assédio sexual campeia em todas as áreas. Mulheres jovens, pouco experientes, ansiosas por ascender profis- sionalmente são alvos certos demachos inseguros, trucu- lentos e frustrados. Eles apostam no medo de elas perde- rem o emprego, se aproveitam da posição de mando para impor sua vontade, submetê-las. Não aceitamnegativas e, muitas vezes, partem para a retaliação quando são devi- damente rejeitados. Era final de uma tarde de um plantão de domingo quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, umrepór- ter veteranome contou: AntônioMarcos Pimenta Neves, diretor de redação de O Estado de S. Paulo , tinha matado a tiros a ex-namorada Sandra Gomide. Eu mal conhecia Pimenta; tinha estado comele uma ou duas vezes em reu- niões de trabalho. Ele me passava aquela ideia de “papai- sabe-tudo”; se vangloriava de seus encontros com famo- sos durante sua permanência nos Estados Unidos. Não conhecia Sandra. Lembrei que poucos dias antes recebera dois recados: 1. Uma repórter chamada Sandra Gomide não deveria ser contratada, pois era incompe- tente; 2. Estava em curso uma campanha injusta contra uma repórter chamada Sandra Gomide, que tinha aca- bado o namoro com o chefe do Estadão . Pimenta assassinou Sandra com dois tiros: o primeiro pelas costas; o segundo no ouvido esquerdo, a uma dis- tância de 40 centímetros, quando a jornalista já estava no chão. Consumado o crime, ele fugiu. O assassinato acon- teceu em20 de agosto de 2000, em Ibiúna, São Paulo. Ela estava com 32 anos; ele, 63. O namoro dos dois tinha durado quatro anos. Quando ela rompeu o relacionamento, ele a demitiu do Estadão . Fuçou em seu computador e espalhou que ela o enganara, que zombara de sua honra. Zombar da honra... a alegação clássica dos matadores de mulheres. O caso mais dramático e violento de assédio sexual na imprensa brasileira se transformou tambémememblema da morosidade da Justiça e dos privilégios que gozam homens ricos e influentes, capazes de contratar bons advogados. Pimenta se safou de punições mais severas, alegou estresse emocional, ficou internado em clínicas; no total, cumpriu pouco mais de cinco anos de prisão. O escritor argentino Tomás EloyMartínez (1934-2010) tra- balhou magistralmente com esse crime na sua ficção O Voo da Rainha (Objetiva, 2002). Qual é a punição? Sem um desfecho assim terrível, alguns chefetes seguem se atribuindo poderes para assediar, importunar, retaliar, ameaçar jovens repórteres. Um rompimento, uma rejei- ção, um “não” abrem espaço para ummundo de dissabo- res, humilhações, injustiças. Quem não cede pode dei- xar de receber as melhores pautas. Pode ter suas suges- tões de reportagem passadas para outros desenvolve- rem. Pode deixar de assinar textos. Pode ser prejudicada na discussão sobre folgas. Pode ser excluída de entrevis- tas importantes, de viagens, de reconhecimento, de pro- moções salariais. O contrário também pode acontecer. Um “sim” pode abrir portas para entrevistas com os maiorais, assinatu- ras em textos que rendem manchetes, promoções sala- riais, viagens, plantões mais suaves. Muitas vezes os casos acontecem fora das sedes das empresas de mídia, em locais onde o poder se exerce de forma mais centralizada, com pouca contestação e fraco controle externo. Na sede de uma grande redação, a comu- nicação vertical pode ser fácil. Encontros informais são possíveis, se tromba com chefes nos bebedouros, no café, nos corredores. Osmúltiplos olhares externos podemblo- quear investidas predatórias. Em espaços em que impera o poder mais concentrado, as vítimas de assédio não encontrammeios para encami- Jovens ansiosas por ascender na profissão são alvos certos de machos inseguros, truculentos e frustrados REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 33 nhar queixas, denunciar abusos, comportamentos incon- venientes. Demissões, contratações, avaliações, remune- rações – tudo passa por um número muito reduzido de pessoas (às vezes é uma só) que têm o condão de definir os rumos de dezenas de profissionais naquele momento. Alguém que contrarie esse chefinho local pode ser alvo de execrações públicas, de “brincadeiras” de mau gosto, de temporadas em “geladeiras”, de demissão. Assédio tem a ver com poder exageradamente desi- gual. O lado mais fraco fica encurralado, dependente, sem voz. O lado mais forte parece incontestável, abso- luto, imbatível. O ambiente recessivo, de sucessivos cor- tes de vagas, de mercado em permanente encolhimento, é outro fator que faz as mulheres hesitaremmuito antes de tomar uma atitude de revolta. Há poucas opções de espaço para que alguém iniciante possa se projetar como um profissional competente. O relacionamento com o chefe pode ser o passaporte para tentar lugar melhor nessa hipercompetição. Contestação e repúdio, ao con- trário, podem fechar portas. Emgeral, as empresas não têmmecanismos para detec- tar e punir casos de assédio. A tendência parece ser igno- rar ou esquecer eventual suspeita de irregularidade. Com quem vai falar a jovem estagiária que pretende denun- ciar o chefe? Que provas ela precisa apresentar? É palavra contra palavra? Que testemunhas poderão falar? Como garantir que a vítima não se torne duplamente vítima? Ninguém com quem eu conversei quis denunciar publi- camente casos concretos, nomes, tempos, locais. Vou ser espinafrada, vou perder meu emprego atual ou vou ter bloqueado futuro relacionamento com a empresa X – me disseram. Para as empresas, a transparência pode trazer riscos, constrangimentos e – omais importante – prejuízos eco- nômicos. Abalos de imagemsignificamperdas ao longo do tempo. Empresas, especialmente as jornalísticas, depen- dem muito de credibilidade. Mais precisamente: credi- bilidade é tudo. Hipocrisia e dissimulação NosEstadosUnidos, o casodeHarveyWeinstein, o ex-todo- -poderoso deHollywood, detonou os bastidores da indús- tria do entretenimento, com severas consequências eco- nômicas para certos grupos. O produtor usava uma más- cara liberal, com uma oratória de apoio a causas identitá- rias, e era aliado de Hillary Clinton e de Barack Obama. É pouco falar em hipocrisia. Se bem que nos Estados Unidos (e também no Brasil), o capitalismo financeiro, para buscar legitimação, tem incentivado causas nobres como o feminismo, o combate ao racismo e à homofobia. Com o objetivo de diluir uma pautamais radical, captura e domestica certas lideranças, que assumem enorme projeção midiática. Assim, a emancipação feminina, resultante de mais de umséculo de lutasmundo afora, é empacotada como fruto de mérito individual, nunca do coletivo em movimento. Sem a força de associações e sindicatos, as mulheres se veem isoladas e sem saída para suas mazelas: salários bai- xos, dupla jornada, assédios múltiplos, falta de escolas e creches, violência – no limite o feminicídio. No Brasil, os assediadores em redações têm discursos mais toscos – algo como uma versão a facão de alguns coronéis libertários do Vale do Silício. Não escondem seu ideáriomachista e conservador, da direita raivosa que sai atacando, compalavrões, sindicalistas, índios, sem-terra, nordestinos, qualquer pessoa que seja de esquerda ou ape- nas dissonante dos acordes de sua bandinha de música. Quando as artimanhas deWeinstein para atrair jovens atrizes vieram a público, algumas jornalistas brasileiras lembraramde histórias semelhantes vividas aqui mesmo. Podem ser exceções personificadas por chefes desequili- brados que nunca deveriam ter sido colocados em posi- ções de comando. O fato é que fazemparte da vergonhosa realidade dos subterrâneos das redações. Uma campanha como a #MeToo, nos Estados Unidos, ainda não surgiu por aqui, mas é possível que encoraje a reação de mulheres contra o assédio. Empresas pare- cem lentas em tratar internamente do tema sobre o qual falam tanto em seus produtos editoriais. Talvez emba- lem a ingênua ideia de que são intocáveis. Medidas para implodir feudos intramuros – lugares férteis para os abusos – são urgentes. Entidades de classe precisam ser muito mais atuantes para destravar o debate, acolher e apoiar vítimas. Novas gerações precisamampliar os limites de suas lutas e enfrentar a naturalização da violência contra a mulher de forma conjunta. Se assédio é sobre poder, o combate a ele também é. A guerra só será vencida coletivamente. ■ eleonora de lucena foi editora-executiva da Folha de S.Paulo (2000-2010) e é diretora de Tutaméia (tutameia.jor.br ).

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