Revista de Jornalismo ESPM 21
34 JANEIRO | JUNHO 2018 Não, é claro que não é, e a aparência de “boa-praça” logo revelaria seu lado mais perverso. A repórter tentava rea- gir combomhumor aos repetidos comentários dele sobre as “pernasmaravilhosas” da “morena tropicana”, mas não cedia. Até que o ostensivo assédio sexual se transformou numpermanente e cada vezmais pesado assédiomoral: o chefe, que tanto elogiava o talento e o potencial da moça, passou a ler os textos dela em voz alta para desqualificá- -la diante dos colegas e dizer que ela era “míope”, que não conseguia enxergar a notícia “a um palmo do nariz”, que tinha de desistir da profissão porque não havia “nascido para ser jornalista”. Esse é apenas o início da narrativa de PaulaMáiran, 50 anos, que ao longo de mais de duas décadas sofreria inú- meros outros episódios de assédio sexual e moral, inclu- sive e sobretudo do mesmo profissional, com quem con- viveria novamente emoutra empresa – ela como chefe de reportagem, ele como diretor de redação. “ Eu comecei a receber mensagens de um desco- nhecido no Orkut, me chamando de ‘uvamadura’, que só tinhamelhorado como tempo... vi que tínhamos ape- nas uma amiga em comum, uma colega de redação, e fui falar com ela para tentar identificar quem era. Ela começou a chorar, disse que ele lhe havia encomendado um perfil falso para poder monitorar a equipe, jamais pensou que era para cantar uma amiga... o pior é que ela estava tendo um caso com ele, verdadeiramente apaixonada, embora ele fosse casado. Essa menina depois tentou se matar. ” Paula Máiran, 50 anos Paula continuou a ser assediada e, como não cedeu, acabou novamente demitida. E ficou doente. “ Eu comecei a travar, precisei operar a coluna cervical, hoje tenho fibromialgia, artrose... fui parar em psiquiatra, tomei remédio pesado... eu era magra, engordei 30 quilos, era saudável, hoje já não sou. E na época fiquei muito mal, muito mal... eu chorava o tempo todo, porque achava aquilo tudo uma tremenda injustiça, ao mesmo tempo me sentia um lixo, porque duvidava da minha capacidade. Eu melhorei, eu luto, eu trabalho, eu faço terapia, mas eu fico no chão com essa desqualificação. ” Idem “não sei se olho para o seu lide ou para o seu decote” , diz o chefe de reportagem à jovem repórter recém-contratada, que ele próprio acabara de promover. O tom é brincalhão, ele gostava de cultivar essa imagem entre colegas e subordinados, gostava de ser visto como “um cara legal”. E achava perfeitamente normal circular pela redação com aquele tipo de comentário. Certa vez, ao topar com um grupo de mulheres no cafezinho do jornal, anunciou: “Estou doido pra dar uma chinelada hoje, quem se habilita?” Todo mundo deveria achar engraçado, afinal jornalista é sem- pre tão informal, leva tudo na brincadeira. Não é? Vozes contra a opressão por sylvia debossan moretzsohn Mulheres fazem relatos de dor, revolta e superação sobre a experiência de serem perseguidas por chefes, colegas e fontes REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 35 Daí a importância do comentário da historiadora por- tuguesa Raquel Varela numprograma de debates da RTP, que ela reproduziu em seu Facebook: “O assédio sexual é na maioria dos casos assédio moral. Desvinculá-lo do moral retira-lhe a carga de totalidade das relações sociais de trabalho e dominação para resumi-lo a uma questão de gênero. Ou seja, o problema não estaria nos locais de trabalho hierarquizados, mas no homem. O que choca diretamente com a realidade: é só irem a uma fábrica de homens operários ver como são tratados pela gestora – mulher – de recursos humanos...”. Favas contadas De fato, em geral as histórias de assédio sexual derivam para o assédiomoral, sobretudo quando amulher rejeita a investida de umchefe. Então sua vida se torna um inferno e a demissão são favas contadas, embora, emalguns casos, o próprio chefe acene com a possibilidade de arrumar emprego para a ex-subordinada emoutra empresa e che- gue às vezes ao requinte de pedir ao amigo psicanalista famoso que telefone para amoça para saber como ela está. Os casos se assemelham e atravessam o tempo: con- versar sobre esse tema com mulheres jornalistas de dis- tintas gerações é recolher relatos de dor e revolta. Pior: é fazê-las reviver situações que gostariamde ter esquecido, superado ou enfrentado de outra forma, quemuitas vezes as levarama perder a autoconfiança e a autoestima e fize- ram tantas adoecerem física e emocionalmente, a ponto de, algumas vezes, desistirem da carreira e até tentarem o suicídio. Ou, ainda, acabarem assassinadas, como San- dra Gomide, morta em 2000 pelo seu ex-chefe, Pimenta Neves, que continuava a assediá-la depois de rompido o relacionamento. Mesmo quem conseguiu se impor e rea- gir à altura carrega consigo o peso das más recordações, o que apenas evidencia o tamanho do trauma que essa violência provoca. É certo que os casos de assédio sexual proliferam no mundo todo e só nos últimos anos, mais de um século depois do surgimento domovimento feminista, começam a ter visibilidade. No Brasil, a campanha Chega de fiu-fiu, lançada pelo coletivo Think Olga em2013, ganhou reper- cussão na mídia, e a #primeiroassedio, que estimulava as mulheres a relataremo que sofreram, atingiu os trending- topics do Twitter em outubro de 2015. Mas, numa sociedade patriarcal como a brasileira, em que o machismo tantas vezes se disfarça e está arrai- gado a ponto de ser reproduzido por muitas mulheres, de maneira consciente ou não, as redações de jornais não seriam um oásis: num país que fundiu e confinou casa grande e senzala em apartamentos de classe média e alta e usou as empregadas domésticas como objeto de cobiça dos patrões e instrumento de iniciação sexual de seus filhos, a normalização do assédio permeia todas as atividades profissionais. É mais grave nas classes subal- ternas, que têmmuitomenos meios para reagir, mas tam- bém atinge os ambientes que exigem elevada formação. Como ocorreu com praticamente todas as profissões tradicionalmente masculinas, o perfil de gênero entre quem exercia o jornalismo também foi se alterando com a progressiva entrada das mulheres nomercado de traba- lho. Em2012, os professores JacquesMick e Samuel Lima, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o apoio da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), coordenaram uma enquete com 2.731 jornalistas, que resultou no livro Perfil do Jornalista Brasileiro (ed. Insu-
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