Revista de Jornalismo ESPM 21
36 JANEIRO | JUNHO 2018 lar, 2013) e mostrou que, nas redações, 64% dos profis- sionais erammulheres, majoritariamente brancas, soltei- ras, de até 30 anos, mas que proporcionalmente ganha- vam menos que os homens. Mais recente e dirigida exclusivamente a esse público feminino, com a adesão de 477 jornalistas, a pesquisa Mulheres no Jornalismo Brasileiro, realizada pela Asso- ciação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela revista eletrônica Gênero e Número , foi divulgada em novembro de 2017 e descreveu as redações como um ambiente em que persistem inúmeras situações de cons- trangimento: isso para uma faixa de 70% a mais de 90% das jornalistas que responderam à pesquisa, conforme a situação. Entretanto, o índice de denúncia era de ape- nas 15%. O relatório da pesquisa informa que, nos grupos focais, compostos de 42 jornalistas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre, o tema mais comentado foi o assédio sexual, praticado por chefes, colegas e fontes. As conclusões apontam a decepção da maioria dessas jornalistas com a conduta das empresas nesses casos. “Segundo seus depoimentos, quando porventura algum caso é solucionado, normalmente isso ocorre por meio de canais informais e relações pessoais. A tendênciamais geral descrita pelas jornalistas, no entanto, é de seminimi- zar e abafar os casos de assédio”, informa o texto. “Algu- mas jornalistas relatam que colegas são mais facilmente punidos por falar mal de um chefe ou fazer alguma brin- cadeira ofensiva com outros colegas homens do que por assediar ou ofender colegas mulheres.” Também é fre- quente a sugestão de que as jornalistas saibam adminis- trar o problema, “seja reavaliando a sua própria conduta, seja sabendo ‘se impor’ nessas situações”. Se é verdade que, principalmente a partir de 2016, começarama se organizarmovimentos de enfrentamento ao machismo e pela garantia da igualdade de direitos, os sucessivos passaralhos dos últimos anos intimidamquem consegue manter o emprego, o que reduz as hipóteses de denunciar qualquer tipo de violência no ambiente de tra- balho, ainda mais esse tipo de assédio, cujas particulari- dades tornam mais difícil e delicada a queixa. “Em primeiro lugar”, diz a presidente da Fenaj, Maria José Braga, “tanto no caso do assédio moral quando no do sexual a vítima está muito fragilizada e demora a pro- curar ajuda. Isso quando procura, porque teme se expor e ficar aindamais vulnerável. Alémdisso, o assédiomoral pode ocorrer com testemunhas: um chefe muito autori- tário pode assediar moralmente um subordinado publi- camente. Mas o sexual quase nunca ocorre na frente de outros. Por isso é mais difícil provar, é a palavra da vítima contra a do assediador. E o sindicato não pode entrar com ação por substituição nesses casos, a ação só pode ser feita se a vítima se identificar.” O caminho da denúncia Mesmo quando há provas é difícil entrar com um pro- cesso. Paula Máiran tinha alguns dos e-mails que com- provavam o assédio, mas os advogados que consultou na época a desencorajaram: “Eles disseram: você sabe que o seu meio é muito machista, né. Sua carreira vai acabar, você nunca mais vai trabalhar em lugar nenhum, vai ter que processar tambéma empresa, que é poderosa, e ainda vai ser a culpada do que aconteceu, porque certamente vão dizer que você é que deve ter provocado.” Embora a situação possa ser menos desfavorável hoje, diante da visibilidade que esse tema temalcançado, a pró- pria legislação restringe a possibilidade de formalização de denúncias ao subordiná-las à existência de uma rela- ção de hierarquia entre assediador e vítima. Oassédio sexual foi tipificado como crime em2001, pela Lei nº 10.224, que deu a seguinte redação ao art. 216-A do Código Penal: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo- -se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício, emprego, cargo ou função”. A pena prevista é de detenção, de uma dois anos. “Essa exigência de relação de hierarquia é umproblema, porque o assédio pode ocorrer entre colegas”, lamenta a presidente da Fenaj. “Mas a legislação só responsabiliza a empresa se há hierarquia, porque supõe que o preposto aja em nome da empresa.” O diretor-executivo da Associação Nacional de Jor- nais (ANJ), Ricardo Pedreira, afirma que a entidade trata da questão de gênero no âmbito de seus comitês edito- rial e de recursos humanos, “sempre com a preocupação de que as empresas tenham uma postura ética e, obvia- mente, orientada pelas determinações legais”, e que desde 2015 ajuda a divulgar entre seus associados “as pesquisas, Deve-se valorizar a coragem de partir para a exposição pública, pois quem tem de estar constrangido é quem comete a violência REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 37 recomendações e notícias daWIN – Women In News, um fórum permanente sobre a questão do gênero feminino na indústria jornalística mundial”. Diz, entretanto, que a ANJ não tem informações sobre a existência de setores específicos nos jornais voltados a atender casos de assédio. “As empresas precisam entender que o combate a essa atitude faz parte do compliance . As empresas querem determinar como os profissionais se comportam nas redes sociais, mas não entendema questão emocional que representa o assédio”, diz Janaína Garcia, 36 anos, repór- ter do UOL e uma das fundadoras do grupo Jornalistas contra o Assédio, criado em junho de 2016 e que mantém uma fanpage no Facebook. “É uma questão de disposição das empresas, que até poderiam lucrar com isso, ter tra- balhadoras mais satisfeitas.” Janaína recorda o caso da figurinista da Rede Globo que precisou vir a público para denunciar o ator José Mayer, porque todas as suas tenta- tivas anteriores, pelos canais internos, foram frustradas. “As empresas jornalísticas vão esperar chegar a um des- gaste desses? Fica mal para a imagem delas”, completa. “O ideal seria que as empresas fossemproativas”, argu- mentaMaria José Braga, “que desenvolvessemprogramas internos para a discussãodessas questões e abrissemcanais de acolhida, não só para receber as denúncias, mas para amparar as vítimas emocionalmente.”Maria José diz que as empresas não criam esses programas porque isso sig- nificaria reconhecer a existência do problema, que abri- ria espaço para indenizações. Ao mesmo tempo, afirma a necessidade de os sindicatos organizarem grupos para essa acolhida, como o que existe em São Paulo. “A gente entende que o caminho é a conscientização política das mulheres e o incentivo à exposição, porque é inevitavel- mente uma exposição pública. É o mesmo incentivo que o movimento feminista faz para denunciar a violência doméstica. É preciso perder o constrangimento, quem tem de estar constrangido é o assediador.” Mudar a cultura Esses esforços dizem respeito a uma luta mais ampla e demorada no campo cultural, que começa como combate à naturalização de certas práticas. Nos anos 1990, por exem- plo, era praxe a eleição das “gostosas da redação”. Todo mundo levava na brincadeira, mas algumas categorias do “prêmio” tinhamuma cargamuito pejorativa: “peixinho de aquário”, por exemplo, era uma clara insinuação sobre a relação entre a “eleita” e seu chefe. “Emcontrapartida”, diz a jornalista Olga deMello, “nós organizamos por três anos a eleição do ‘thesouro da redação’, na qual só as mulheres votavame era elegível qualquer ser nascido homem, inclu- sive os gays.” Também muito assediada – “até a idade da invisibilidade, que aos 40 a vida acaba”–, Olga, hoje com 57 anos, foi das raras que, apesar de seu excelente humor, reagiram comvigor a essas situações. Isso lhe custou, logo no início da carreira, “certa perseguição” de uma pessoa poderosa na hierarquia do jornal, o que a levou a ter ape- nas duas promoções em dez anos de casa. “ De coleguinhas eu ouvi obscenidades, que passa- vampor brincadeiras. E tinha os toques indevidos, que são desagradabilíssimos. Fora o comportamento de um assessor de imprensa que, enquanto eu estava grávida, passava a mão na minha barriga dizendo que tinha tesão por mulher grávida. ” Olga deMello, 57 anos Mas há tambémoambientede rivalidade entre asmulhe- res quando alguma delas chama a atenção por seus atri- butos físicos. Dois casos, de épocas diferentes, ilustram bem essa situação, e só foram relatados sob a garantia do anonimato. O primeiro é o de uma jornalista de 63 anos e mais de 40 de carreira, 30 dos quais em grandes reda- ções do Rio de Janeiro. “Chegaram a plantar a história de que eu tinha namorado um político importante, que de fato me assediou certa vez. Eu não era de frequentar fes- tas nem bares, não tinha patota, tinha um filho pequeno e precisava cuidar dele”, diz. Foi muito assediada desde sempre, e a negativa resultava em assédio moral intenso, que incluía boa dose de cinismo. “ Um dos chefes que me atacaramme passou uma pauta de capa justamente sobre assédio sexual. Depois, outra capa, comfoto, de alguémque tivesse feito prótese peniana. Depois me mandou fazer e reescrever quatro vezes uma matéria de 20 laudas sobre um traficante. Quando entreguei, às 2 da manhã, ele disse que tinha esquecido de avisar que a matéria tinha caído. ” Jornalista de 63 anos, commais de 30 de experiência em grandes redações do Rio de Janeiro
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