Revista de Jornalismo ESPM 21

38 JANEIRO | JUNHO 2018 “Todos achavam que eu era bonita e burra”, prossegue a jornalista, “e o tempo todo eu queria provar que eu não era uma bunda, eu era uma repórter bonita e competente.” Por isso aceitava as pautas mais difíceis e perigosas. E iro- niza: “Eu tenho de ser grata a esses caras, porque a exi- gência cada vez maior deles foi me burilando, só sendo muito competente eu conseguia permanecer no emprego”. O outro caso ocorreu com uma jornalista mais jovem, hoje beirando os 40 anos, que sofreu porque seus cole- gas se convenceram de que ela obtinha furos devido aos seios que saltavam da blusa. “ Eu não tinha seios, e isso era um trauma pra mim. Nas primeiras férias do meu primeiro emprego, ainda naminha cidade natal, decidi botar silicone. Epra mim o grande barato da vida era usar uma blusa com decote, não imaginei que isso seria um problema. ” Jornalista de 40 anos, que deixou as redações por causa das perseguições No Rio, o salário não dava para pagar mais do que um quarto numpensionato de freiras. Ainda assim, ficou com a pecha de piranha. “Eu descobri que aqui as pessoas tra- balhavam em pool , combinavam lide... e decidi que não ia fazer aquilo porque meu trabalho precisava ter um dife- rencial, para melhorar meu salário.” Então, por exemplo, nos plantões em delegacias, os colegas saíam para almo- çar e ela ficava. “No dia seguinte minha matéria tinha uma informação diferente. Mas o problema não era que eles tinham ido almoçar. O problema era o meu decote. Você dizer que a sua concorrente transa com as fontes é uma desculpa inquestionável, contra isso não tem como lutar. É mais fácil criar esse personagem do que admitir que eu poderia ter talento.” As perseguições dos colegas chegaram a tal nível que ela adoeceu a ponto de definhar. Na primeira oportunidade, deixou a redação e foi traba- lhar em assessoria. “ Fui ganhar como PJ o que ganhava com car- teira assinada, mas preferi assim porque não aguen- tava mais gastar dinheiro em terapia e remédio con- trolado. Ainda frequento terapia, são 12 anos de feri- das... eu fui atrás de um sonho, não sabia que seria tão dolorido. ” Idem Essa história permite pensar também sobre o controle do comportamento das jornalistas, que inclui sua forma de vestir. A pesquisa da Abraji recolheu muitas reclama- ções a esse respeito e anotou: “Esse controle oscila entre exigir que a profissional cubra o corpo a fim de ser res- peitada e não ‘distrair’ os homens até o seu inverso: com frequência chefes e colegas sugerem que as jornalistas exponham e usem o corpo como instrumento de traba- lho, instrumentalizando o interesse sexual dos homens a seu favor na cobertura jornalística”. É uma questão que põe em causa o assédio sexual por parte das fontes, e que ocorre independentemente do traje. São comuns os casos dos que chamam a repórter para um chope ou um jantar, a pretexto de passar mais informações. Flávia Oliveira, 48 anos, com carreira con- solidada noGrupoGlobo, considera gravíssima essa situa- ção e conta que, emduas ocasiões, duas fontes – dois eco- nomistas – tentaram beijá-la à força. O fato de ser negra foi uma característica suplementar para atrair também a cobiça dos chefes, que a assediaram bastante no iní- cio da carreira: “Há uma sexualização excessiva atribu- ída às mulheres negras e isso desperta certo despudor nas abordagens”. Tolerância do mercado Finalmente, existem histórias de jornalistas que cedem aos apelos de superiores ou fontes, ou mesmo se insi- nuam para ascenderem de posto. Uma das entrevistadas deplora essa situação: “Quem fez isso precisa carregar a culpa de ter reforçado esse estigma. Elas têmde saber que fizeram muito mal às colegas. Não as que se envolveram afetivamente, mas as que fizeram por carreirismo. Por- que deramargumento para eles avançaremcada vezmais o sinal, e de perseguirem quem não cedeu”. Olga tem outra opinião. “ A gente ouvia falar disso, eu nunca tentei apu- rar, acho que isso é mais ou menos como prostituição: é muito fácil você falar mal da prostituta, mas quem está ganhandomais não é ela. Temuma rede que ganha grana com isso e tem o cara que usa aquele serviço. Então é muito fácil falar, ah, fulaninha deu pro chefe e é por isso que ela está ali. Amulher que chega à che- Se a mulher rejeita o ataque, o assédio sexual costuma derivar para o assédio moral – então a vida no trabalho se torna um inferno REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 39 fia é sempre vista como alguém que obteve favores. E a que sobe e não deu bola pra ninguém, a primeira coisa que falam: é sapa. ” Olga de Mello, 57 anos Já Flávia reconhece que esse é o outro lado da natura- lização do assédio e que houve quem, por conivência ou falta de consciência, se aproveitou desse ambiente para se promover na carreira, mas ressalva: “ Só olhar o final do filme e vilanizar essas mulhe- res não conta a história toda. É porque o mercado é tolerante com o assédio que existem mulheres que se aproveitam disso. A regra do jogo costumava ser essa. Émuito caro se insurgir. E você não sabe se é por uma questão de necessidade de manter o emprego ou se é por ambição. Mas a premissa é que omercado banaliza esse tipo de prática. Então eu não culpo a colega. ” Flávia Oliveira, 48 anos Essa banalização vem sendo combatida com os movi- mentos surgidos nos últimos anos. “Quando comecei, no início dos anos 1990”, diz Flávia, “o assédio era a norma. Era ou aguenta ou sai. Lembro de ter comentado com algumas amigas sobre episódios que sofri e elas diziam que não era bem isso: que era um galanteio, que eu era radical. Agora cresceu a percepção de que se trata de uma forma de violência. As jovens hoje estão numa situ- ação menos pior, porque a tolerância a todas as formas de agressão à mulher mudou.” A criação do coletivo #jornalistascontraoassedio é um exemplo do que pode ser feito para ajudar a mudar a cul- turamachista. A iniciativa surgiu após a demissão de uma jovem repórter que havia denunciado o assédio do can- tor Biel durante uma entrevista. Janaína Garcia protes- tou contra aquilo no seu Facebook, num post que rapi- damente obteve muitos compartilhamentos. Logo uma colega lhe sugeriu fazer um vídeo, divulgado em grupos de WhatsApp, apelando a que outras jornalistas envias- sem selfies contando suas histórias. “Em um dia”, conta Janaína, “o grupo ‘mulheres jornalistas contra o assé- dio’ teve 4 mil adesões. Em um fim de semana juntamos 150 vídeos e começamos a mobilização. Ficou evidente o tamanho da demanda reprimida para falar disso.” O grupo hoje conta com 30 jornalistas de pratica- mente todas as redações de São Paulo, além de asses- sorias, inclusive do Ministério Público, o que ajuda nas ações desenvolvidas. Em 2017, aproveitando uma crô- nica publicada no Correio Braziliense que ressuscitava o estereótipo da estagiária “sedutora” e foi muito criticada nas redes, lançou uma série de vídeos em que jornalistas homens recitavam e criticavam frases de assédio ouvidas por suas colegas. “Quisemos envolver os homens por- que não podemos continuar falando apenas para a nossa bolha”, explica Janaína. Essa decisão faz parte do esforço de enquadrar o femi- nismo na perspectiva mais ampla da questão do poder, “que se exerce demaneiramais opressora sobre amulher, mas atinge o trabalhador demodo geral”. A jornalista con- clui: “É preciso naturalizar o ativismo, entender que que- remos condições iguais para todos. Seria isto o ideal: o feminismo deixar de ser necessário como forma de tratar causas tão básicas de desigualdade, porque então teríamos compreendido a necessidade de respeitar todomundo”. ■ sylvia debossan moretzsohn é professora aposentada de jornalismo da Universidade Federal Fluminense. É pesquisadora do ObjETHOS, Observatório da Ética Jornalística, e autora de O Papel dos Motoristas de Jornal na Produção da Notícia (Editora Três Estrelas, 2013).

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