Revista de Jornalismo ESPM 21
40 JANEIRO | JUNHO 2018 1. Os “elementos iniciais” do conto Sim, mas, como não sou ficcionista, tentarei descrever o pano de fundo histórico, psicossocial, enfim, “material”, a partir do qual esse conto de Kafka não escrito pode- ria brotar. Num entrelaçamento entre uma estética do argentino Jorge Luis Borges e o método marxista de crí- tica estética, minha aposta pessoal é que estamos assis- tindo ao nascimento de uma transformação psicossocial que nem a direita e sua crença risível no mercado, nem a esquerda e sua crença risível em sua própria santidade, parecemcapazes de enfrentar. Inclusive porque elasmes- mas participam do encantamento ridículo com alguns dos “elementos” que compõem o processo em questão. O que vou descrever na sequência, o faço assim como quem descreve um processo inexorável. A única possibi- lidade de isso não acontecer é se o capitalismo acabar e voltarmos ao neolítico. Nesse sentido, brinco um pouco de ficcionista, a diferença é que os personagens somos nós dois: eu que escrevo e você que me lê. Como o texugo na novela de Kafka AConstrução (Companhia das Letras, 1998), que se perde no labirinto que ele mesmo constrói em sua moradia a fim de escapar do ruído ensurdecedor que ele pensa vir de fora, nosso mundo contemporâneo vai se afundando nas suas versões “mais avançadas” de si mesmo. A decisão de criar “ummundo melhor” é a nossa “construção”. Temos a vontade de fazê-lo e a tecnologia para tal já está em nossas mãos. Dizia antes do caráter fake de nossa época. Ele se apre- senta no mínimo em duas facetas essenciais: a primeira, mais conhecida, é a das fake news. A segunda, nãomenos grave, mas ainda menos discutida, é a fake ethics. Os dois problemas se relacionam de diversas formas, seja por meio da tradição filosófica (e a dificuldade de dizer com segurança o que é a verdade ou que é o bem, dificuldade esta denominada classicamente como “relativismo”), seja pela associação à dinâmica social, cognitiva e psicológica da democracia (o relativismo é a dinâmica cognitiva da democracia por excelência), ou, mais contemporanea- mente, por conta das redes sociais (todo mundo posta o que quiser e todo mundo consome os posts que quiser). Nesse caso específico das redes sociais, como se conhece bemem teoria demídia, “omeio é amensagem”, e amen- sagem nas redes sociais é: “sou incontrolável”, devido à plataforma tecnológica em si, dispersa, descentralizada, interativa. Talvez a melhor descrição das redes sociais seria “um círculo cuja circunferência está em toda parte e o centro em parte alguma”. Vale lembrar que essa era a descrição de Deus feita por Nicolau de Cusa no século 15, posteriormente utilizada por Blaise Pascal no século 17 “Esperanças há muitas, mas não para nós” ( franz kafka) neste breve artigo vou defender a ideia de que vivemos numa era fake que prepara a maior desumanização já imaginada. O espírito que paira sobre esse processo é o do escritor judeu de Praga Franz Kafka. Imaginemos um conto que ele nunca escreveu... O conto que Kafka não escreveu por luiz felipe pondé Um mundo regido por fake news e fake ethics tende à imobilidade do desejo e ao império do medo e da chantagem REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 41 para definir a natureza do universo. Estamos, assim, diante de um fenômeno de escala que tende ao infinito. Mesmo sabendo que as redes sociais têm“dono” (as empresas pro- vedoras), e, portanto, modos de “manipulação”, creio que aqui entra em cena um fator fundamental: as novas gera- ções de jovens estão cada vez mais adaptadas à destrui- ção do humano “ultrapassado” em nome de sua versão “melhor”, e essa versão passa, primeiro, pela “era fake”, para, em seguida, entrar na sua solução final, a destrui- ção absoluta da privacidade em nome do bem. Há uma identificação profunda entre as novas gerações (a gera- ção i – internet, iPhone –, tal como a denomina a psicó- loga americana Jean Twenge) e o potencial radicalmente democrático das redes sociais e sua vocação à “política mobile”. E essa identificação as levará à destruição da pri- vacidade em nome do bem de todos (além, é claro, como todo mundo já sabe, à destruição das instituições demo- cráticas representativas em defesa de um culto da “iDe- mocracy”, a democracia direta mobile). O que antes era “fake” passará a ser visto como uma guerrilha em defesa do bemdemocrático coletivo e da liberdade redentora de todos os cidadãos com direito a ter opiniões sobre tudo. Minha hipótese, resumindo, é que não há como esca- par de nenhuma das duas formas de práticas “fake”, a não ser por meio da radicalização da destruição da pri- vacidade de modo absoluto levada a cabo pelas mesmas redes sociais, associadas aos avanços dos processadores de dados conhecidos como algoritmos. Só que não se trata propriamente de uma superação de fato do caráter fake, mas simde sua elevação ao estatuto de verdade da demo- cracia e bem social para todos. O “mundo melhor” será tagarela e todo mundo vai vigiar todo mundo. Quando o aparelho jurídico lançar mão de tudo que o mercado tem produzido em termos de processadores, a humanidade criará um sistema de destruição do indivíduo que deixa- ria Kafka assustado em suas noites insones. O ensaio está dividido em quatro partes. A primeira, sobre os “elementos iniciais do conto”, que aqui se encerra, emais três: fake news, fake ethics e a “superação” do valor negativo das fake news e fake ethics. 2. Fake news Em2016, omundo entrou empânicoporqueTrump acusou umjornalista de praticar fake news, quando ele, Trump, era e é suspeito de criar “versões alternativas” para fatos narra- dos pelamídia americana, alémde comprar fake newsmade in Russia contra Hillary Clinton. Independentemente da figura deTrump emsi (não gostar doTrump é umdaqueles testes de pureza ideológica que os estados fascistas e comu- nistas exigiam de seus cidadãos), e de ele, provavelmente, mentir mesmo (o verbo “mentir” soará cada vez mais naïf com o passar dos anos), o fato é que a mídia americana é extremamente enviesada para a esquerda (leia-se, a favor do Partido Democrata). Mas, como quase todo mundo lá dito inteligente é simpatizante do Partido Democrata (os “liberais” nos Estados Unidos), não há conflito com o fato de amídia ser enviesada. Uma das coisas queme intrigam, mas não émeu objeto de reflexão aqui, é como a classe dos inteligentes se constitui num amálgama de preconceitos, RICO LINS
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