Revista de Jornalismo ESPM 21
42 JANEIRO | JUNHO 2018 vícios cognitivos, crenças insustentáveis, mentiras úteis, tanto quanto os crentesmais tarados da face da Terra. Não é à toa que os cursos de humanas são verdadeiras Madra- sas “islâmicas radicalizantes” de jovens. Jornalistas, filósofos, políticos, psicólogos, sociólogos, padres, pais de santo, crianças acima dos 5 anos de idade, dominatrixes, veganos, aborígines, enfim, todos se puse- ram a discutir o que fazer com as fake news. Foi um bom período para uma classe desvalida como a dos jornalistas: mais estágios, mais assinantes, mais anúncios, enfim, mais vida. É incrível como a vida também se alimenta de lixo. Para além do fato envolvendo Trump, o problema das fake news é grave, não só porque corrói a credibilidade da informação em larga escala, mas também porque se transforma em atividade “propositiva”: você pode abrir “empresas” (que podem ser emSri Lanka ouMacedônia) cujo objetivo é difundir notícias falsas contra pessoas ou instituições. Para além de qualquer debate, há dois fatos muito interessantes sobre o assunto: o primeiro é sua “fundamentação filosófica” de grande credencial histó- rica. O segundo é que as pessoas comuns não estão nem aí para o risco das fake news e consomem notícias falsas comgozo, contanto que sejama favor do que elas gostam. Esse traço de comportamento do consumidor será essen- cial para a transformação das “fake news” em“valor agre- gado” político à ideia de liberdade e igualdade de opiniões do indivíduo comumempoderado que veremos na quarta parte deste breve ensaio. Sei, alguns podemme julgar nii- lista ao dizer isso, mas nem por isso deixo de ter razão. Sabe-se há séculos que a filosofia suspeita da dificul- dade de determinar a verdade das coisas. Tem-se até uma especialidade em filosofia para isso: epistemologia. Essa dúvida era disseminada por toda a filosofia grega antiga, de sofistas a Platão, dos céticos aos cínicos. Para além dessa questão “meramente” epistêmica, Platão já havia apontado a inviabilidade da verdade na democracia. Já na filosofia contemporânea, em pleno século 20, um dos ícones dos “progressistas”, o francês Michel Foucault, engrossou o caldo da negação da verdade dizendo que ela não passa de uma “organização epistêmica” a serviço do poder. Logo, verdade é política, logo, verdade é poder, logo, vale tudo. Foucault é o grande patrono da defesa das fake news como paradigma guerrilheiro no mundo da informação. Os foucaultianos não confessam seu amor ilícito pelas fake news pelos vícios típicos da classe inte- ligente citados acima. Sendo a democracia um regime de votos, retórica e aparências (hoje, se diria marketing), o que vale é o que melhor convence. Mesmo que rostos indignados (olha aí a fake ethics mostrando sua cara...) apareçam nas telas e nos textos criticando o caráter marqueteiro da democra- cia, todomundo sabe que não há saída. Oumelhor, a saída é ter o melhor marqueteiro. E, hoje, um especialista em mídias digitais. E a crítica de Platão temdesdobramentos mais graves do que parece de início. Ser sofista (o nome do relativista grego antigo) é estarmuito próximo do risco niilistamesmo. Veremos isso na quarta parte deste ensaio. A democracia é, portanto, um regime pouco afeito a ver- dades absolutas, ela tem uma vocação estrutural ao rela- tivismo. Com as redes sociais, essa estrutura se fez plena. A verdade está morta no mundo da informação, com as bênçãos de Foucault. É tudo uma questão de cliques. E clique é poder. 3. Fake ethics Já a fake ethics depende do politicamente correto, essa praga que é mais comum entre pessoas “inteligentes” do que entre pessoas que trabalhamcomasmãos. Parecehaver uma tendência irresistível em quem trabalha com o inte- lecto a esquecer o “nome” das coisas. O trabalho manual parece resguardar certa sanidade. Talvez fosse isso que BasílioMagno, monge cristão do século 4, tinha emmente ao determinar que seus monges deveriammanter o traba- lhar físico extenuante além de estudar e orar. Uma vez que tudo é passível de ser gravado em áudio ou vídeo, qualquer coisa que você diga poderá ser exposto universalmente (as redes sociais são a eternidade infer- nal no presente). Sabe-se que a mentira numa certa dose sempre foi necessária para um bom convívio social, mas a fake ethics é a profissionalização das opiniões corre- tas mesmo que falsas por pânico de processos ou lincha- mentos públicos. Para além do jornalismo, a judiciali- zação do pensamento é o grande mercado por excelên- cia da fake ethics. Há uma relação promíscua entre fake news e fake ethics: qualquer coisa dita sobre você fará de você um réu confesso pedindo perdão. A única coisa que o salva é o tédio de malhar o mesmo “Judas” por muito tempo. Um próximo surgirá. Mas o dano profissional e pessoal pode ser indelével. O Ministério Público fará de todos nós praticantes de fake ethics. Na dúvida, todos acusarão todos de racismo, sexismo, especismo, islamofobia, gordofobia. As opini- ões tenderão à mesmice que garante a janta de quemvive do debate público. O interesse entre homens e mulheres chegará a zero se você quiser se garantir contra suspei- tas de assédio (nem assimhaverá garantias). Omundo da fake ethics tende à imobilidade do desejo e ao império do medo e da chantagem. Em defesa da carreira profissional, jornalistas e inte- lectuais praticarão fake ethics em escala industrial. Inte- ressante notar que, com a febre das denúncias de assédio sexual, uma das áreasmais afetadas é justamente omundo da mídia. Tenho duas hipóteses básicas sobre a razão de haver tanta denúncia de assédio sexual neste mundo. A primeira é que grande parte de quem trabalha na mídia, REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 43 principalmente no jornalismo, se acha santa, e são justa- mente os santinhos que mais odeiam o sexo e, por isso mesmo, levarão todos à prática fake emética nas relações de trabalho. A segunda é que nestemundo há umacúmulo significativo de pessoas infelizes e sem vida pessoal afe- tiva significativa. Ganham mal e perdem a importância a cada dia. O impacto da ética fake nesse universo será avassalador. Associada às fake news nas redes sociais, a ética fake será o golpe mortal na relação entre democra- cia e verdade no século 21. 4. A “superação” do fake pela sua elevação a categoria nor- mativa na sociedade A maioridade da era fake chegará quando uma consciên- cia foucaultiana atingir as massas. A frase é para soar ana- crônica mesmo. Se verdade é apenas política, o temor pla- tônico de a democracia degenerar emdemagogia oumera retórica mudará de sentido porque justamente aquilo que era visto como valor negativo, agora, após Foucault, passa a ter um outro valor agregado: todos podem dizer tudo o que quiser e as “grandes marcas” damídia “revelarão” sua verdadeira face:medode perdermercado e poder. Vou con- tar uma coisa para você. No começo de 2017, uma impor- tante entidade ligada ao jornalismo fez um evento sobre fake news do qual tive o prazer de participar. Contando a alunos de pós-graduação emmídia sobre o evento, foi con- senso entre eles, numa sala de 25 estudantes, que eventos como aquele serviamao domínio do capital contra a liber- dade da informação e das narrativas dos indivíduos empo- derados. É incrível como há quase sempre uma confiança bovina no “povo”, quando se trata do tema democracia. A verdade é que a crítica de Platão à democracia não é apenas um fato epistemológico, é estético e ético: a demo- cracia, por ser um regime de quantidades, temuma voca- ção ao “gosto” pelo numérico, gosto este que casa muito bemcoma retórica “progressista” emdefesa dos “demos” (uma quantidade acima de tudo), quanto ao gosto da socie- dade de mercado, na qual o consumidor é o senhor abso- luto no manicômio. A associação entre o relativismo sofista e teorias pós- -modernas de cepa foucaultiana e derridadiana [origi- nada no pensamento do filósofo franco-argelino Jacques Derrida] estabelecema fundamentação conceitual, vinda da filosofia e das ciências humanas, para a defesa radical das fake news como a superação da fé ingênua na noção de credibilidade das marcas (leia-se, do poder institu- ído). O encontro entre uma “estética” da escolha do con- sumo (apenas) de notícias que concordam comigo, traço das “massas digitais”, e a fundamentação teórica sofis- ticada se constituirá na defesa de que fake news é ape- nas o “nome” negativo que capitalistas platônicos usam para defender seus mercados de trabalho cujo objeto é a informação. Não existe verdade, apenas narrativas. É incrível como professores que ensinam isso aos alunos podem ir a público com faces indignadas contra as fake news. Ou estamos aqui no âmbito da má-fé ou da esqui- zofrenia intelectual. Mas uma passagem fundamental, que terá a bênção dos mais jovens, será a destruição total da privacidade pormeio dos avanços inevitáveis das tecnologias digitais de locali- zação, imagem, registro e rastros em tempo real (cultura mobile como ativismo político), obrigando todos à prá- tica fake em ética “twentyfourseven” . O filme O Círculo (dirigido por James Ponsoldt, 2017), com Emma Watson e TomHanks, é paradigmático da adesão das novas gera- ções à política mobile como controle dos comportamen- tos: ao final do filme, Emma entende que omal é “apenas” o Tom (dono da empresa) ser corrupto, mas a tecnologia “twentyfourseven” (o “círculo” em si), que submete todos a verem todos o tempo todo é, na verdade, a única forma verdadeira de democracia. Porque a humanidade é linda se deixada livre para ser, falar, pensar, postar, se expres- sar. E isso darámuito dinheiro. Como numgigantesco jar- dim da infância para retardados mentais alegres cheios de bons sentimentos, viveremos na tela o tempo todo. Dadas as condições materiais contemporâneas, e por materiais refiro-me aqui tanto a condições econômicas quanto a vínculos, práticas, avanços tecnológicos, ativismo político e estético, perfis demográficos, misériamental da pedagogia (todos presos no círculo da beleza do “netciti- zen” ), não há saída para esse processo. A saída será, na ver- dade, a instituição do processo emsi como normatividade política, social e psíquica. Ea classe intelectual é a primeira baixa nesse processo. A segunda, osmais jovens. Entre eles e outros, virá você e eu. Gregor Samsa (personagemcentral do romance de Kafka AMetamorfose , que vira um inseto marrom), finalmente, será uma maioria emancipada. ■ luiz felipe pondé é filósofo e colunista da Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo.
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