Revista de Jornalismo ESPM 21
44 JANEIRO | JUNHO 2018 Jornalistas sob tutela por paulo zocchi Casos de intimidação nas redes sociais estimulam debate sobre a liberdade de expressão no emprego e também fora dele umamatéria informativa publicada em 13 de outubro de 2017, na Folha de S.Paulo , sobre o filme Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola , levou o humo- ristaDaniloGentili, protagonista, pro- dutor e roteirista da história, a desen- cadear uminferno emrede social con- tra o seu autor, o jornalista Diego Bar- gas, demitido do jornal nomesmo dia, ainda antes do final do expediente. O episódio teve ampla repercussão no ambiente da imprensa. Além de se somar como mais um exemplo de agressão e desrespeito à atividade jor- nalísticaemredesocial, chamouaaten- ção para umproblema-chave do exer- cício do jornalismo no Brasil de hoje: a limitação à liberdade de expressão, e até à cidadania, para o grosso dos assalariados que exercem a profissão. Quando esse episódio ocorreu, vários casos de perseguição a jorna- listas emrede social já haviamaconte- cido nosmeses anteriores. Enão esta- mos falando de colunistas ou bloguei- ros, de jornalismoopinativo. Tratamos aqui de reações a reportagens corri- queiras, que desagradaram autorida- des ou certos setores sociais, sobre assuntos variados, como denúncias de abusos policiais, episódios envol- vendo as Forças Armadas ou o desem- penho de governantes, veiculadas em jornais, sites ou programas de rádio. Uma característica dessas agressões é que – mesmo quando incluíram o veículo noticioso – sempre tiveram como alvo principal as pessoas dos jornalistas, os autores das matérias, buscando intimidar e, no entender do Sindicato dos Jornalistas Profis- sionais no Estado de São Paulo, cen- surar o direito à informação e a liber- dade de imprensa. Caiu na rede Um exemplo é o do repórter Artur Rodrigues, tambémda FolhadeS.Paulo , autor damatéria “Doações prometidas porDoria empacam” (7/7/2017), sobre as relações entre empresas e a prefei- turapaulistana. Trata-sedeumamaté- ria rigorosa, combaseemdadosoficiais do próprio município, demonstrando que, de um total de R$ 626,5 milhões queaprefeituradivulgavacomoomon- tante de doações privadas recebidas desde o início da gestão, haviam sido de fato concretizados até aquela data apenas R$ 47,7 milhões. A posição do governo estava retratada num “outro lado” extenso, no qual o prefeito João Doria (PSDB) explicava que a divul- gação do montante de propostas de doações visava dar “transparência” ao processo. Adespeitodisso, a reaçãodo prefeito à publicação da reportagem foi agressiva, na forma de um vídeo postado emrede social (https://www. youtube.com/watch?v=6zDscqknfBE ), no qual exibe o jornal, cita mais de uma vez o nome do jornalista e busca desqualificar a matéria e o repórter, mas não contesta nenhumdado apre- sentado no texto. O pronunciamento de Doria funcionou com uma senha para que grupos organizados que o apoiam desencadeassem um ataque emmassa em rede social, emdiversas plataformas, buscando expor e intimi- darorepórter. Seoprefeito, comoqual- quer cidadão, temo direito de criticar uma reportagem, como administrador público temsobretudoodever depres- tar contas de sua gestão. Sua resposta mostraumadministrador avessoauma análise séria de suas realizações e que se apoia no ativismo em rede social para tentar sufocar as críticas. REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 45 No mesmo mês, outra reportagem novamente incomodou a prefeitura de São Paulo. Em 19 de julho, às 7h damanhã, numdos dias mais frios do ano, a repórter Camila Olivo, da rádio CBN, presenciou funcionários da lim- peza pública a serviço da adminis- tração municipal direcionando jatos d’água a pertences de moradores de rua, atingindo inclusive alguns deles, para tirá-los dos locais em que dor- miam. Anotícia causou comoção. Nas primeiras horas, a prefeitura reconhe- ceuo ocorrido, culpando opessoal ter- ceirizado, mas mudou de orientação depois, passando a criticar a matéria e a jornalista, acusando-a de má-fé. Também nesse caso grupos organi- zados partiram para o ataque pessoal à jornalista. Nos dois episódios, como emoutros semelhantes, a demonização pública dos profissionais de imprensa toma base emsites de direita especializados em fake news, que produzem textos com títulos como “Jornalista da CBN quementiu sobre gestãoDoria utilizar jatos de água para acordarmendigos é militante de extrema esquerda”, com- partilhados em rede associados a xin- gamentos, calúnias e ameaças. A pos- tura das empresas jornalísticas, nes- sas situações, temsido a demanifestar internamenteapoioaseusprofissionais (como oferecer suporte jurídico), mas muito tímidaemsuaexpressãopública, o que inevitavelmente reforça a sen- sação de fragilidade de repórteres em relação a pautas que possam resultar em reações agressivas na rede social. O presente momento de acirra- mento das tensões políticas e sociais no Brasil se expressa de forma aguda no ambiente da internet, e a persegui- ção a jornalistas integra esse cenário. O Ministério Público do Estado de São Paulo, que desde 2015 se preocu- pava comas agressões físicas a repór- teres em conflitos de rua, já começou agora a adotar procedimentos para coibir crimes contra jornalistas em rede social. Para a categoria profissio- nal, cabe aprofundar o debate sobre medidas efetivas de defesa do exer- cício do jornalismo e de responsabi- lização de agressores e caluniadores ocultos nos labirintos que o ambiente virtual abriga. Regra da coação Em seu início, o caso de Diego Bargas era semelhante aos demais: uma ten- tativa de Danilo Gentili de calar uma abordagemque consideravanegativa a seu trabalho, embora tambémse possa enxergar uma estratégia para ampliar a visibilidade do filme na hora de seu lançamento, por meio da promoção de uma polêmica artificial, usando a reportagem da Folha como escada. Alguns dias antes, Bargas, repórter do site de entretenimentoF5, da Folha de S.Paulo , havia sido escalado para comparecer à exibição prévia do filme para jornalistas. Ele iria, em seguida, entrevistar o diretor, Fabrício Bittar, e Gentili num formato conhecido pelo jargãode junket –que consiste emuma conversa gravada emvídeo, nesse caso deoitominutos, naqual entrevistador e entrevistados sentam-se frentea frente, emumcenário alusivo ao filme. Opro- fissional sai do local com a gravação numpendrive entreguepelaprodução. Éummaterial de trabalhodo jornalista, que pode ser editado e usado como parte de uma matéria multimídia ou simplesmente como o registro sonoro que dá base ao texto da reportagem. Na sexta-feira, dia seguinte ao lan- çamento, a Folha destinouboapartede uma página ao filme, com a reporta- gemdeBargas euma crítica ácida assi- nada porMarinaGaleano. Às 10h14da manhã, Gentili iniciou emseuTwitter o que a ombudsman do jornal, Paula Cesarino Costa, classificou de cyber- bullying, e escolheuBargas como alvo. Gentili publicou: “Matériamente. Pos- tarei em breve vídeo da entrevista na íntegra (eu filmei). PesquisemDIEGO BARGAS. Qual é a chance de fazer matéria isenta?”, acompanhado de uma imagem da reportagem. Pouco depois, divulgou o vídeo coma íntegra da entrevistanoYouTube. Emnenhum momento, porém, se preocupou em apontar de forma específica nenhuma “mentira” ou falha na reportagem. Quem comparar a entrevista (https://www.youtube.com/watch? v=IfOtKaKoJoY) com a reporta- gem (https://www1.folha.uol.com. br/ilustrada/2017/10/1926636- -criada-por-danilo-gentili-come- dia-juvenil-ri-de-bullying-e-pedofi- lia.shtml) verificará que – indepen- dentemente da avaliação sobre a qua- lidade da entrevista – a matéria é cor- reta: reproduz o conteúdoda conversa de maneira objetiva e informativa. Acontece que Gentilli tem 16 milhões de seguidores no Twitter e outros 13 milhões noFacebook, e, quando come- çou a fazer acusações agressivas, deu início a um linchamento virtual con- trao repórter. Bargas passoua sermas- sacrado emrede social por uma horda furiosa, comxingamentos, agressões e ameaças. Emmeio à escalada de hosti- lidades, Gentili compartilhou também postagens antigas feitas pelo jornalista noFacebook, InstagrameTwitter, cha- mando-o de “petista”. Assim que se deu conta do que ocorria, Bargas rapidamente trancou suas redes sociais e avisou à chefia
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