Revista de Jornalismo ESPM 21
46 JANEIRO | JUNHO 2018 no jornal. Os ataques prosseguiram por horas, semque a própria Folha os contestasse. O que se viu foi Gentili ampliando a “polêmica” e usando-a de forma a convocar o seu público a comparecer às salas de cinema. Mas, até aí, era uma situação que se identificava comas vividas por outros profissionais de imprensa. Os desen- volvimentos posteriores, no entanto, derama esse episódio repercussões e implicações bem mais graves. Demissão e consequências Ao longo daquela tarde, houve uma troca de e-mails entre o jornalista e a sua chefia direta, responsável por designá-lo para a reportagem. No iní- cio da noite, Bargas foi chamado para uma conversa e demitido. O motivo, segundo reportagem a respeito do assunto publicada na segunda-feira (16/10), foi “ter desrespeitado orien- tação reiterada sobre comportamento nas redes sociais”. O texto ainda explica: “Os jornalistas da Folha são orientados a evitarmanifestações polí- tico-partidárias e a não emitir nas redes juízosquecomprometama inde- pendência de suas reportagens”. Aqui, chega-se ao âmago da ques- tão: jornalista tem (ou não) direito à liberdade de expressão, como a Cons- tituição Federal garante a qualquer cidadão brasileiro? Essa “orientação” que a empresa jornalística Folha da Manhã S.A. dá a seus empregados jornalistas viola ou não tal princí- pio? Registre-se que o assunto diz respeito não a uma, mas ao universo das empresas jornalísticas no país, tal como a Abril e a Globo, que também compartilhamorientações similares. Em seu artigo 5º, a Constituição estabelece, como princípios bási- cos, entre os direitos dos cidadãos, que “é livre a manifestação do pen- samento” (inciso IV), que “é inviolá- vel a liberdade de consciência” (inciso VI) e que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença reli- giosa ou de convicção filosófica ou política” (inciso VIII). São cláusulas pétreas, que norteiam e orientam os demais direitos constitucionais. Pode- -se citar ainda o art. 220, do capítulo sobre a Comunicação Social: “Amani- festação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qual- quer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”. Mas, naturalmente, a Carta tambémdeter- mina que, entre os fundamentos do Estado brasileiro, estão “os valores sociais do trabalho e da livre inicia- tiva” (art. 1º, inciso IV). Caberia então a pergunta: a livre e pública expres- são de opinião por jornalistas empre- gados poderia, de alguma forma, ser considerada contrária à livre inicia- tiva de seu empregador? Como ponto preliminar, é impor- tante esclarecer que Bargas não foi demitido por justa causa, medida vista pela lei como uma punição por trans- gressão grave, que priva o trabalha- dor de vários direitos econômicos no momento da rescisão contratual. A legislação trabalhista considera como motivos para uma demissão desse tipo atos como “improbidade”, “desídia nas funções”, procedimento lesivo à empresa, mas também“incontinência de conduta ou mau procedimento” e “ato de indisciplina ou de insubordi- nação”. A empresa não quis entrar nesse terreno, talvez porque a ques- tão, em toda a sua complexidade, já seria de imediato submetida à Justiça. Entretanto, os motivos para o des- ligamento do jornalista, mesmo ocor- rendo sem justa causa, foram publi- camente formalizados como resul- tado da expressão de opiniões pesso- ais emrede social. Para a Folha , Bargas não tinha direito de se expressar publicamente como o fez, mesmo em suas contas pessoais de Facebook ou Twitter, fora do horário de trabalho. Um leigo, certamente, pode achar que os jornalistas têm total liberdade de expressão por meio de seu traba- lho; a Justiça, também. Pode-se ler no voto do ministro Gilmar Mendes, do SupremoTribunal Federal (STF), rela- tor no julgamento que derrubou a exi- gência de diploma para o acesso à pro- fissão de jornalista ( junho de 2009): “Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicamprofissionalmente ao exer- cícioplenoda liberdadede expressão”. Mas será que podemos considerar que haja de fato “liberdade de expres- são” (e ainda por cima “plena”!) a um jornalista empregado, assalariado, no exercício profissional diário num grande veículo privado de comunica- ção? Quando está a trabalho, na nossa opinião, não! E a liberdade? Peguemos o caso de Bargas: ele assis- tiu ao filme, fez uma entrevista e pro- duziu uma matéria descritiva, que reporta ao leitor informações gerais sobre a obra e traz elementos extra- ídos da entrevista com o diretor e o protagonista. Podemos considerar, sem usar muito a imaginação, que as opiniões pessoais do jornalista sobre o filme não foram expressas direta- mente na matéria. No fazer jornalís- tico, há uma técnica para reportar. Há ferramentas para avaliar a relevân- cia dos fatos e preceitos sobre como abordá-los, considerando-se o perfil do veículo informativo e o público leitor. Há a chefia orientando e con- trolando a produção jornalística de uma redação, expressão prática da hierarquia na empresa de comuni- cação. Tudo isso resulta na matéria publicada, na qual o jornalista não expressa opiniões pessoais, pois as páginas do jornal no qual trabalha não são um espaço livre à sua disposição para exercer a liberdade de expressão. Épreciso, para entendê-la, analisar REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 47 a questão inserindo-a nas relações de trabalho, pois os grandes veículos de comunicação no Brasil são empresas privadas, com uma hierarquia decor- rente de sua natureza, e os jornalistas, em sua grande maioria, são assalaria- dos – quer dizer, dependemde vender a sua força de trabalho para garantir a sobrevivência ao final do mês. Por mais queo jornalismo sejaumtrabalho intelectual, o profissional da área está subordinado a relações de produção que, em sua essência, são semelhan- tes às de qualquer outro assalariado. Ocorre que o fundamento básico do jornalismo é o direito social à infor- mação, e o bomprofissional, desde os bancos da faculdade, se liga a com- promissos éticos que, muitas vezes, colocam-no em conflito com orien- tações superiores ou com os interes- ses diretos do empregador. O Código de Ética da profissão temcomo base a ideia simples de que “o compromisso fundamental do jornalista é coma ver- dade no relato dos fatos”, e de que ele “deve pautar o seu trabalho pela pre- cisa apuração dos acontecimentos e por sua correta divulgação”. A tensão entre essas diretrizes e a realidade das redações permeia o cotidiano dos pro- fissionais de imprensa. Cláusula de consciência Como a contradição se apresenta nas relações de trabalho, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo busca há alguns anos avançar na regulamen- tação desse tema emconvenções cole- tivas. Em suas pautas nas campanhas salariais, elaboroua chamada “cláusula de consciência”, que diz o seguinte: “Pelo respeito à ética jornalística, à consciência do profissional e à liber- dade de expressão e de imprensa, fica reconhecido o direito ao jornalista de recusararealizaçãodereportagensque firamoCódigodeÉticados Jornalistas Brasileiros, violema sua consciência e contrariem a sua apuração dos fatos. Parágrafo 1º – Pelos mesmos moti- vos, e pela preservação da relação com as fontes, o profissional tem o direito de se opor à utilizaçãodematerial pro- duzidopor eleemreportagemcoletiva, bem como negar que seu nome seja associado a qualquer trabalho jorna- lístico publicado pela empresa. Parágrafo2º – Aatitudede recusado jornalista, nessas situações, não pode ser usada pela empresa para sancio- nar o profissional.” É importante notar que, longe de garantir a “plena liberdade de expressão” ao jornalista no trabalho, a cláusula temumcarátermais propria- mente “defensivo”, ou seja, busca pre- servar o profissional de ser obrigado a se ligar a uma reportagem que con- trarie frontalmente seus princípios ou suasopiniões. E,mesmo isso, as empre- sas recusam.Otextoacima foi reprodu- zido da pauta entregue recentemente ao Sindicato das Empresas de Rádio e TelevisãonoEstadode SãoPaulo (Ser- tesp), exatamente a mesma entidade que ingressou no STF para derrubar a obrigatoriedade do diploma para o jornalismo profissional. No tribunal, para desregulamentar a profissão, o Sertesp lança mão do argumento de que o jornalista tem plena liberdade de expressão, mas na prática da Con- vençãoColetiva deTrabalho rejeita ao profissional até o simples direito de se dissociar de uma matéria que fira sua consciência, buscando preservar intacto e pleno (aí, sim!) o poder dire- tivo que a lei dá ao empregador sobre a produção de seus empregados. Essa cláusula, com redação seme- lhante, já foi objeto de discussão no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), no dissídio dos funcio- nários da Fundação Padre Anchieta (Rádio eTVCultura de SãoPaulo), em 2017, emdiscussãopreliminar que res- tou inconclusiva, e no Tribunal Supe- rior do Trabalho (TST), no dissídio dos funcionários da Empresa Brasil de Comunicação, em 2016. No TST, o presidentedaaudiênciadeconciliação, ministro Emmanoel Pereira, opôs-se nos debates à cláusula de consciência, argumentando comconvicção que, se fosse proprietário de umjornal e deci- disse criticar um prefeito, ordenaria a um de seus jornalistas que fizesse reportagem crítica ao administrador público, e ele, como empregado, teria a obrigação de obedecer. Na prática, os veículos de comuni- cação têmplena liberdade de expres- são, mas os jornalistas que neles traba- lham, não. Osindicato, inclusive, parte dessa constatação para defender os jornalistas em situações de conflitos de rua, quando manifestantes, indig- nados com uma empresa de comuni- Na prática, os veículos de comunicação têm pleno direito a manifestar opiniões, mas quem trabalha neles, não
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