Revista de Jornalismo ESPM 21
48 JANEIRO | JUNHO 2018 cação, atacam fisicamente os profis- sionais a seu serviço. A entidade dife- rencia a responsabilidade da empresa e dos jornalistas emrelação aonoticiá- rio. Sob o título “Jornalista é trabalha- dor”, a entidade distribuiu em janeiro de 2018 um panfleto a manifestantes afirmando que cada qual pode ter “crí- ticas emrelação às empresas de comu- nicação”, e que faz parte da democra- cia o direito de protestar contra um órgão de imprensa, mas que “os jorna- listas não são responsáveis” pela linha editorial dos veículos e que seu traba- lho deve ser respeitado e preservado. Jornalista e cidadania Por força da realidade das relações de trabalho em nossa sociedade, nos parece assim evidente que não é no exercício profissional que o jorna- lista assalariado pode exercer plena- mente a sua cidadania e o seu direito à liberdade de expressão. Então, onde e quando ele pode exercer de forma plena a sua liberdade de expressão, o seu direito de opinar politicamente, de defender pontos de vista emsocie- dade, de apoiar uma opinião majori- tária ou de adotar posições polêmi- cas, segundo seus princípios pessoais e obedecendo unicamente à sua cons- ciência? Sobretudo quando não está a trabalho. Só que, justamente nesse momento e nesse espaço da vida pri- vada, as empresas jornalísticas preten- dem tutelar a liberdade de expressão do jornalista. É isso o que fundamenta a explicação pública para a demissão de Bargas pela Folha de S.Paulo . A base para a demissão está numa orientação da direção de redação da Folha para seus jornalistas, enviada em 8/9/2015, intitulada “sobre ações em redes sociais”, na qual se diz: “(...) o jornalista da Folha deve evitar: mani- festar posições político-partidárias; (...) emitir juízos que comprometam a independência ou prejudiquem a imagem da Folha ”. Em primeiro lugar, vejamos como isso se expressou concretamente. Como Bargas teria transgredido a orientação? Segundo sua chefia, por meio de cinco postagens em rede social, aprimeiraanterior à suaentrada no emprego, e as outras quatro, pos- teriores (reproduzidas no alto desta página e na seguinte). A primeira postagem é uma brin- cadeira composta de um comentário jocoso e uma foto feita 14 anos antes, na qual aparece o adolescente Bargas ao lado do presidenteLuiz InácioLula da Silva. As outras quatro estão longe de expressaremqualquer opiniãopolí- tica taxativa, emuitomenos de signi- ficarem algum tipo de militância – o que tampouco seria reprovável. Per- cebe-se que, sob um figurino como esse, não há um espaço mínimo para a liberdade de expressão de nenhum profissional. Pormeio de sua orientação, a Folha de S.Paulo pretende comunicar a seus jornalistas que, mesmo fora do traba- lho, não podem expressar nenhuma opinião política. Em sua coluna de 22/10/2017, a ombudsman do jornal extrai como uma das decorrências da demissão de Bargas que “a postagem dos profissionais da casa em redes sociais ficará sob escrutínio”. É legí- timo que o jornal faça isso? A Folha não está sozinha nesse ter- reno. A Editora Abril diz em seu guia interno que “considera a militância política do jornalista como desaconse- lhável”, e proíbe a militância se o jor- nalista trabalha compolíticaouecono- mia. Sobre a internet, determina que “o jornalista não deve escrever emsua página nas redes sociais ou em blogs nada que não escreveria nos títulos da Abril”. Pretende, assim, limitar a liberdade de expressão do profissio- nal estritamente às diretrizes edito- riais da empresa. FOTOS REPRODUÇÃO O jornalista Diego Bargas publicou no Facebook foto ao lado de Lula e posts sobre o cenário político que foram considerados militância REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 49 Montagem realizada por simpatizantes de Danilo Gentili que reúne postagens do repórter Diego Bargas e matéria sobre filme do humorista A TV Globo, em comunicado recentede suadireçãoeditorial, afirma que a “participação de jornalistas do GrupoGlobo emplataformas da inter- net como blogs pessoais, redes sociais e sites colaborativos deve levar em conta que os jornalistas são, emgrande medida, responsáveis pela imagemdos veículos para os quais trabalhame, por isso, devemevitar em suas atividades públicas tudo aquilo que possa com- prometer a percepção de que exer- cem a profissão com isenção e corre- ção”. Como se vê, a empresa liga sua imagemà do profissional mesmo fora do expediente, cerceando sua liber- dade pessoal. Com suas orientações, as empre- sas de comunicação pretendemimpor limitações à expressão pública de seus empregados jornalistas, em nome de seus interesses de mercado. Perceba- -se que, dando coerência a essa argu- mentação empresarial, não estaría- mos falando apenas de opiniões polí- ticas, mas da expressão de opinião pessoal em público a respeito, even- tualmente, de qualquer assunto. Pois, se o jornalista aparece como corin- tiano, como poderia fazer uma maté- ria sobre futebol? E se defende ciclo- vias, como poderia fazer umamatéria sobre mobilidade urbana? Assim, em nome da suposta objetividade jorna- lística, o que se tolhe é a cidadania e a liberdade de expressão do jornalista fora da empresa, em sua vida social, o que é inaceitável, e uma afronta aos preceitos da Constituição. Sem liber- dade de expressão no emprego, por força das relações de trabalho, e tam- bémfora dele, o jornalista se torna um cidadão de segunda classe. Interesses ocultos Nesse debate, não se pode ignorar que qualquerbomjornalista, emesmoqual- quer órgão de imprensa, tem pontos de vista fundamentados sobre a rea- lidade do país e do mundo, e possui inclusivepreferênciaspartidárias, polí- ticas e econômicas. Não há nenhum problema – muito ao contrário – que essas opiniões e pontos de vista sejam osmais transparentes possíveis. Exis- tem modelos: na França, os grandes jornais são abertamente vinculados a correntes políticas – e até a partidos –, e não deixam por isso de ter reco- nhecimento mundial como órgãos de informação de qualidade e relevância. O que transparece é que, com essa diretriz geral, o objetivo das empre- sas de comunicação noBrasil é ocultar suas preferências e orientações – polí- ticas, econômicas, sociais – sob uma imagem falseada de objetividade e de imparcialidade, considerada chave para o posicionamento de mercado dos veículos por questões de marke- ting e propaganda, mas não por ser uma característica realmente vincu- lada à essência do fazer jornalístico. Nesse jogo de interesses, quer se sacrificar a cidadania do jornalista. Qualquer cidadão brasileiro, porém, possui o direito de se expressar livre- mente, e o fato de uma empresa con- tratá-lo não dá ao empregador o direito de calar a boca do empregado. Seria uma posição obscurantista e autoritária. O jornalismo de quali- dade consiste, justamente, na capaci- dade do profissional, por meio da boa técnica, da integridade e da capacita- ção, de apurar e reportar os fatos de maneira correta, ética e abrangente. Isso é perfeitamente harmônico com a plena liberdade de expressão, pois o exercício da cidadania produz cida- dãosmais conscientes, íntegros, e jor- nalistas mais críticos, independentes e comprometidos com o direito da sociedade à informação. ■ paulo zocchi é presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
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