Revista de Jornalismo ESPM 21
58 JANEIRO | JUNHO 2018 programa tinha o sonoplasta Johnny Black (João Antonio de Souza), que criava ilustração e “comentários” sonoros, com trechos escolhidos de músicas, que selecionava de acordo com a pauta do programa. O garoto e a rapaziada Se a revolução do Pasquim e as outras bossas do humor e jornalismo cario- cas aconteciam nos bares da beira- -mar, nada mais paulistano do que os pioneiros da linguagem mais sol- tinha seremencontradiços numa can- tina italiana. O “polpetone” do Jar- dim di Napoli atraía Faustão, Osmar, Juarez, mas também o publicitário Washington Olivetto, o menino-pro- dígio que colocou a propaganda bra- sileira no mapa dos prêmios interna- cionais, trocando os galãs dos anún- cios pelo magrelo e sem jeito Carlos Moreno e deixando a linguagem da propaganda mais coloquial e bem- -humorada. Outro habitué era Ser- ginho Leite, famoso locutor de FM. É onde entra o meu depoimento sobre o começo da linguagem jorna- lística em frequênciamodulada, uma antepassada esquecidadas rádiosmais conversadas de hoje. Em25 de janeiro de 1980, numani- versário de São Paulo, era inaugurada a Rádio Cidade FM, do grupo Jornal do Brasil , com a missão de repetir o meteórico sucesso obtido pelo for- mato no Rio de Janeiro, onde foi lan- çada emmaio de 1977 e rapidamente chegou à liderança da audiência. O segredo era dar liberdade aos locutores para improvisar, desimpos- tar a voz, dialogar com o ouvinte, ao mesmo tempo que operavam a mesa de som, assumindo completo controle sobre a dinâmica da rádio. Misturava técnicas de DJs das rádios america- nas coma carioquicedos apresentado- res. Foi umsucesso entre os jovens de classe média para cima, parte impor- tante do total de ouvintes de FM – o que se explica pela raridade dos aparelhos que captassem frequência modulada, presentes basicamente em automóveis e emgrandes receivers de mesa. O walkman e seus similares só surgiriam na virada dos anos 1980. Golpe no embalo do funk O chefe de redação do Jornal do Bra- sil , João Batista Lemos, me chamou ao aquário para comunicar a transfe- rência para a rádio, ordenando: “Tome conta daquela molecada, não deixe falar muita bobagem”. Aquela mole- cada? Eu tinha 22 anos! Logo aprendi que as notinhas, cinco por hora, não deveriam seguir o figurino dos jornais impressos, o ritmo das agências de notícias nem das rádios jornalísticas como a Jovem Pan, mesmo nos seus momentos de variedades. A concorrência primária nãoeranemsequer entrenotíciasmais oumenos adequadas. Era da fala com a música. Mesmo a locução conver- sada dos apresentadores recebia crí- ticas de ouvintes pelo telefone. Eles queriam gravar os sucessos favoritos em seus gravadores de fita cassete e “aquela falação” atrapalhava. Umdos procedimentos dessa nova dinâmica era falar, notícias inclusive, ocupando os tempos instrumentais do começo ou final da música. Umepisódio limiteno conflito entre o novo formato e o “velho” jornalismo se deu numa tarde de abril de 1980, quando o apresentador Edmir Rabello resolveu entremear umanimado funk com uma notícia sobre um golpe de EstadonaLibéria. Entre cada fraseque lia, descrevendo os horrores emortes nopaís daÁfrica, aumentava o volume da sacolejante música. Surpreso com a minha reação e com a reunião com a coordenação que se seguiu, candida- mente defendeu sua atitude emnome da manutenção do “pique” da rádio. A fórmula com textomais próximo do coloquial, amistura de temas mais leves com as informações realmente relevantes do dia, foi surgindo aos poucos. Os locutores começaram a se relacionar melhor com as notícias e transmitiam com maior envolvi- mento e propriedade. A alquimia teve o apoio ativo do apresentador Paulo Leite, o “VelhoMilk”, e do repórter da sucursal do JB, Fernando Zamith, e a cumplicidade do coordenador Carlos Townsend. As queixas contra as notí- cias diminuíram substancialmente. A fórmula da abobrinha Na nova prática, números eram arre- dondados. Quemqueria saber dos cen- tavos do prêmio da loteria? Manche- A fórmula com o texto mais próximo do coloquial e a mistura entre temas mais leves e informações realmente relevantes do dia foi surgindo aos poucos REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 59 tes retrancando os casos mais famo- sos eram herança dos jornalões fala- dos. Algumas notícias que deman- davam mais espaço podiam ser sec- cionadas e retomadas mais adiante. Também era aconselhável conside- rar o ambiente político, a “abertura lenta e gradual” conduzida pelo gene- ral Geisel. O final da censura prévia à imprensa era uma memória muito recente e minha presença ainda era solicitada no “aquário” para ajustes. Além dos assuntos sérios da polí- tica, economia e internacional, a pauta também tentava se aproximar do cotidiano do ouvinte falando sobre música, diversão e arte. E, para refor- çar e dar substância à relação leve e amistosa dos apresentadores com o público, abrimos espaço para a tão recriminada “abobrinha”. A centenária senhora chinesa que revelava que seu segredo de longevi- dade incluía álcool, cigarros e comida gordurosa; a pesquisa científica que informava que ratos detestamqueijo; o técnico de futebol daltônico que gri- tava para o juiz fazer gol; o primeiro voo fretado de nudistas para visitar praias brasileiras. Esses são alguns exemplos dessas “não notícias” hoje completamente incorporadas ao dia a dia dos meios de comunicação. A proporção das “abobrinhas” não passava de um quinto ou menos do noticiário. Mas sua “visibilidade” era tanta que merecia elogios dos ouvin- tes, mas muitas críticas na imprensa “séria”, que pregava a pecha de aliena- das, como tascou Heródoto Barbeiro numprefácio: “De ummodo geral, as emissoras de FMaceitamapenas notí- cias engraçadas, descomprometidas, otimistas, dirigidas ao público jovem”. Heródoto acertava no atacado: a situação piorou para o tratamento da informação porque o sucesso das FMs causou a cobiça de grupos ligados a políticos, principalmente durante o governo Sarney. Por serem conces- sões gratuitas demanutenção barata, com equipe reduzida em relação ao AM, muitamúsica, bom faturamento e a vantagem de poder falar bem do dono candidato a cada dois anos, as novas rádios viraram logo moeda de troca. Nesses prefixos, a redação se resumia ao “recórter” – um estagiá- rio munido de tesoura. O jornal e mais 12 músicas A fórmula da Rádio Cidade foi um sucesso tambémemSão Paulo. A lide- rança chegou emmenos de dezmeses e, comela, o assédio aos profissionais por outras emissoras. Em agosto de 1981, a Jovem Pan 2, o FM da rádio Panamericana, levava os apresenta- dores Paulo Leite, Serginho Leite, Cesar Rosa e este autor, encarregado de cuidar de jornalismo, produção e promoção. A missão era um desafio e enfren- tavamuita desconfiança. Ao ser apre- sentado pelo filho Tutinha ao pai, “seu” Tuta, Antônio Augusto Amaral de Carvalho, antes de receber a mão para o cumprimento levei um “puxa, mas como é jovem”. Não funcionou o bigode que eu cultivava e deveria me dar mais credibilidade. Depois de preparar o pequeno exér- cito que recebi, meia dúzia dos mais jovens estagiários, toca enfrentar a resistência dos repórteres da AM, que reivindicavam, com razão, um extra para trabalharem tambémpara a FM. Comuma pequena catequese sobre o formato da notícia na jovememissora e de um ajuste da área técnica e de operação, logo estávamos pilotando uma programação com informação que não faria feio em uma emissora jornalística. Das 7h às 9h, Serginho Leite inse- ria praticamente todas as notícias do Jornal daManhã doAMcompactadas nas introduções de músicas, além da meteorologia, correspondentes inter- nacionais, trânsito e flashes ao vivo. Ainda tinha umboletimmais robusto de doisminutos nas horas cheias. Sem deixar de tocar pelomenos 12músicas a cada 60 minutos. Em pouco tempo, a JovemPan 2 conquistava a liderança da audiência. A chegada do walkman e princi- palmente de suas contrafações nacio- nais baratas abriu espaço para clas- ses mais baixas entrarem aos borbo- tões no reino damúsica e alegria. Para atender aonovopúblico, vieramnovos ritmos emergentes, como pagode, axé e sertanejo, e as boys bands, como os Menudos. Por essa época, Carlos Sie- gelman, responsável pela RádioMan- chete, me ligou pedindo um projeto para adequar a fala da sua emissora, que disparava tocando os novos suces- sos de apelo popular, mas cujo jorna- lismo ainda informava a situação dos aeroportos, com interesse improvável para os jovens da periferia. Emalguns dias, liguei com a resposta, mas Car- linhos me dispensou alegremente: “Não precisa mais. A gente já chegou a primeiro do Ibope”. Com informa- ções direto de Cumbica. As emissoras que se dispunham a chegar à liderança deixaramde se pre- ocupar comaqualidadeda informação jornalística, restringindo-se às obriga- ções da legislação. O jornalismo ficou esparso empoucas emissoras e o rádio FM, no geral, voltou ao automático. Boas experiências como na Eldorado FM e 89-Rádio Rock não deram cria. E cada vez que precisa soltar a lin- guagem, o rádio começa do zero. ■ luiz henrique romagnoli é jornalista, professor e presidente da Associação das Produtoras Independentes de Rádio e Outros Conteúdos de Áudio (Apraia). Passou pelo Jornal do Brasil , Jornal da Tarde , Grupo Bandeirantes, Transamérica, entre outros. No governo Lula, formatou e dirigiu o programa Café com o Presidente e coordenou as mudanças na Voz do Brasil.
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