Revista de Jornalismo ESPM 21
60 JANEIRO | JUNHO 2018 REUTERS/LATINSTOCK PARA LER e PARA VER LEÃO SERVA BASTARAM DOIS DIAS DE Fire and Fury nos Estados Unidos para a editora brasileira Objetiva comprar os direitos do livro, começan- do as vendas antecipadas já em janeiro (o lançamento está previs- to para março). Para apressar a edição, foram cinco tradutores tra- balhando simultaneamente, numa operação de guerra. Vale a pena: a obra do jornalista americano Michael Wolff é uma bomba atômica moral sobre a cabeça, confusa, de Donald Trump. A história catalisou a discussão sobre o equilíbrio emocional do presidente, o que nos Estados Unidos pode ensejar ações formais de impedimento. Baseado em cerca de 200 entrevistas com pessoas ligadas a Trump, a sua campanha e à administração federal, Fogo e Fúria faz um retrato de uma pessoa com déficit de atenção, incapaz de ler uma página de texto ou ouvir explicações que exijam um mínimo de concentração; além disso, ignorante de assuntos necessários ao exercício de um cargo que, inclusive, ele não queria realmente ou não achava possível conquistar. A reportagem de Wolff soa in- verossímil em um primeiro mo- mento: com todo o sigilo que en- volve a Casa Branca, como seria possível obter detalhes íntimos e diálogos como ele narra? O autor vacina contra a suspeita ao abrir o livro com a descrição de um jantar cheio de diálogos revela- dores, entre colaboradores pró- ximos de Trump, que mostra co- mo ele tem acesso a fontes que, por inexperiência ou empáfia, fa- lammuito. É o caso do estrategis- ta de campanha Steve Bannon, a principal fonte do livro e o res- ponsável por abrir as portas da Casa Branca para o repórter. Às primeiras notícias sobre o livro, Trump ameaçou formal- mente a editora, caso mantives- se a publicação. Diante do ris- co de censura, os editores ante- ciparam a distribuição dos vo- lumes para 5/1. A demanda foi maior do que a capacidade de impressão: o best-seller instan- tâneo se esgotou no primeiro dia em Washington e Nova York, e cópias digitais chegaram a ou- tros países. Empoucas horas, to- do o planeta sabia que o presi- dente dos Estados Unidos é um mentecapto (ou pelo menos as- LIVRO Fogo e fúria no destino de Donald Trump O presidente Donald Trump é retratado como desequilibrado, inapto e ignorante em livro-reportagem de Michael Wolff REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 61 sim é retratado no texto). “Quem é o meu Roy Cohn?”, perguntou Trump, quando sou- be do conteúdo de Fire and Fury . Referia-se ao advogado, seu mentor no início da carreira, que recomendava sempre ata- car comprocessos judiciais qual- quer crítica. Na falta de Cohn (1927-1986), Trump enviou car- tas de ameaças aos editores, se- lando o sucesso do livro. Cohn foi uma das figuras mais temidas e odiadas da política americana do século 20 e viveu à sombra do poder por várias dé- cadas. Sua trajetória foi conta- da na biografia Citizen Cohn (de Nicholas von Hoffman, 1988). Co- mo promotor, nos anos 1950, no auge da Guerra Fria, processou diversos acusados de espiona- gem ou comunismo e alcançou fama com o caso do casal Ethel e Julius Rosenberg, executados em 1953. Foi o braço direito do senador Joseph McCarthy na co- missão de investigações de ati- vidades antiamericanas. Embo- ra gay, perseguia homossexuais com brutalidade. Mais tarde, tornou-se um im- portante advogado, com clientes renomados, e consultor de polí- ticos republicanos. Foi amigo de Richard Nixon, Ronald Reagan e Donald Trump. Morreu com aids, em 1986, quando a doença ain- da era chamada de “peste gay”. A trajetória de Cohn, seu esti- lo agressivo e ambiguidade trá- gica, é um dos fios condutores da peça Angels in America , de Tony Kushner, um clássico con- temporâneo lançado no início dos anos 1990. A peça tem uma remontagem que é destaque da atual temporada teatral londri- na, ganhando mais atualidade ao estrear em 2017, logo após a posse de Trump. Trump conheceu Roy Cohn na cena noturna nova-iorquina, REPRODUÇÃO quando era um jovem empresá- rio. Adotou a técnica de proces- sar quem se interpusesse em seu caminho. Até mesmo a Receita Federal americana foi processa- da em resposta a uma cobran- ça de impostos. Ele não esque- ceu as lições, mas se afastou de Cohn às primeiras notícias de que ele estava com aids. Fez agora o mesmo com o assessor Steve Bannon, considerado responsá- vel pela estratégia que o elegeu, tão logo soube que ele era uma fonte de Fire and Fury . Cohn aconselhou a resposta agressiva de Richard Nixon in- clusive diante das primeiras acu- sações do escândalo Watergate, que levaram à sua renúncia. Deu palpites a Reagan, um dos mais populares presidentes america- nos da história. E foi também o mentor do estilo de Trump, que inspirou sua reação diante do li- vro de Wolff. Resta saber se o atual presidente terá destino se- melhante ao de Nixon ou ao de Reagan. ■ SÉRIE Popularidade da rainha Elizabeth e do neto Harry está em alta ENQUANTO A CASA BRANCA parece ruir sob o terremoto Trump e o governo britânico sob o furacão Brexit, a Famí- lia Real inglesa passa por um momento paradoxal de lumi- nosa popularidade e abso- luto escrutínio público. The Crown , uma dramatização da história da rainha Elizabeth 2ª desde que assumiu o tro- no, produzida para a Netflix, é um dos maiores sucessos re- centes da TV. A série mostra de forma respeitosa a vida da rainha, sua família e o exercício de seu poder simbólico, em de- talhes como nem tabloides sensacionalistas revelariam. Ao narrar os bastidores do re- lacionamento entre a rainha e os primeiros-ministros de seu reinado, a série deu novo des- taque à imagem de Winston Churchill enquanto revelava as fraquezas dele e de seus sucessores. Também mostrando os fo- gosos romances da irmã mais nova de Elizabeth, Margaret (a filha preferida do rei George 6º), e as complicadas decisões relativas às autorizações pa- ra seu casamento, a série é di- dática sobre o formalismo das uniões reais. Por isso mesmo, o progra- ma de TV tem uma ligação de mútuo benefício com a prepa- ração do casamento do prín- cipe Harry, filho mais novo do herdeiro do trono, Charles, com a atriz americana Meghan Markle, mais velha e separada, e ela mesmo estrela de séries televisivas. Prevista para maio, a sole- nidade provoca muitas com- parações com o roteiro da sé- rie (baseada em fatos da vida real), como a abdicação do rei Eduardo 8º, tio da rainha atu- al, que abriu mão do trono em 1936 como condição para se casar com uma mulher mais velha, divorciada e de outra religião. Por que Harry pode e Eduardo 8º não pôde é algo que os espectadores, súditos ou não, vão se perguntar por muitos capítulos. ■ The Crown faz a vida imitar a série Fogo e Fúria, Michael Wolff, Objetiva, 2018 Citizen Cohn, Nicholas von Hoffman. George G. Harrap & Co. Ltd., 1988 Angels inAmerica, Tony Kushner. Disponível em livro digital da ed. Continuum (Canadá) The Crown, Netflix. Série criada por Peter Morgan. Com Claire Foy, Matt Smith e Vanessa Kirby, entre outros MAX MUMBY/INDIGO/GETTY IMAGES
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