Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018
10 JULHO | DEZEMBRO 2018 DIRETO DE COLUMBIA por michael schudson A Suprema Corte americana proíbe o registro e a transmissão de imagens de seus debates. Os argumentos para o veto são válidos numa sociedade democrática? Bem longe das câmeras em democracias , transparência soa como uma virtude inquestionável. Afinal, uma democracia seria mesmo uma democracia se os eleitores fossem impedidos de saber como operam as engrenagens do governo? Por outro lado, em certas circuns- tâncias há inúmeras razões para sacrificar a transparência em prol de outros valores e virtudes democrá- ticos. Jornalistas sabem disso como ninguém. Em geral, acham formidá- vel ter acesso aomáximo de informa- ção possível sobre o governo e outras esferas do poder na sociedade, mas, quando o assunto é divulgar suas fon- tes, normalmente não são nada aber- tos. E por bons motivos: uma fonte pode ver em risco o emprego, a vida ou o bem-estar da própria família se vier a público que repassa informa- ções a jornalistas. “Sinceridade é a melhor política”, diz uma velha máxima. “Não con- sigo mentir”, teria dito um George Washington ainda menino (em um relato muito difundido, mas de natu- reza obviamentemitológica). Na vida privada, não são poucas as ocasiões emque discrição e critério nos levam à sensata e admirável omissão da ver- dade. Nem sempre somos sinceros quando dizemos a uma criança para onde vai o gato ou o cachorro aomor- rer (dizemos “para debaixo da terra, onde o cadáver se decompõe” ou “para o céu, com outros bichinhos”?). Não somos totalmente sinceros com o amigo ou a conhecida que pergunta se ficou bemou não coma roupa nova. Não falamos que a pessoa parece ter engordado “dez quilos” ou que está querendo “voltar no tempo”, embora até possamos sugerir que o visual tal- vez não seja o melhor para ela. Seja comuma criança, seja comalguémoti- mista com a própria aparência, evita- mos a franqueza para não causar sofri- mento à toa. Esse mesmo instinto faz o professor matizar a verdade para o aluno, e omesmo se dá comomédico no contato com o paciente. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte não permite o registro dos deba- tes da corte por câmeras fotográfi- cas ou de vídeo. A democracia pare- ceria indicar que o certo seria seguir o exemplo do Brasil e de outros paí- ses onde câmeras são bem-vindas nos tribunais superiores. Há argu- mentos para manter a atual proibi- ção nos Estados Unidos? Contrário à transmissão, o minis- tro da Suprema Corte americana Anthony Kennedy disse (em 2007) temer que a prática abalasse o “espírito de colegiado” da corte. “Ao não per- mitir câmeras, mostramos que somos diferentes. Somos julgados por aquilo que escrevemos (…), por um prazo muito mais longo. Não somos julga- dos por aquilo que dizemos”, decla- rou, obviamente para fortes aplausos. Já outra ministra da corte máxima americana, Elena Kagan, achava em 2011 que transmitir as sessões plená- rias seria excelente, pois comparti- lhava com Kennedy a opinião de que a Suprema Corte americana opera de forma admirável e achava que faria bem ao cidadão poder ver o tribunal REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 11 em ação. Essa publicidade, a seu ver, “faria a população se sentirmuito bem em relação a esse braço [do Estado] e a como ele está operando”. Será que isso atiçaria, entre os magistrados, uma disputa para ver quem é mais eloquente? Talvez. Mas, mesmo semcâmeras, oministro ame- ricano Antonin Scalia soltava frases de efeito voto após voto. Não havia, entre os colegas, quem rivalizasse sua língua afiada. Parece mais questão de estilo pessoal do que de determi- nismo tecnológico. Mas certos magis- trados já mostraram receio de que a publicidade das sessões exporia juí- zes ou a corte toda a críticas caso argumentos orais fossem tirados de contexto, sobretudo em programas de TV. Isso aconteceria de fato? Sus- peito que com menos frequência do que os juízes imaginam. Mas aconte- ceria? É claro que sim. Os 50 estados americanos permi- temcâmeras emseus tribunais supre- mos. No Texas, por exemplo, as ses- sões são transmitidas ao vivo e ficam desse algo com essa publicidade. É bem provável que a audiência des- sas transmissões fosse constituída dos mais partidários e ideológicos dos cidadãos. E é provável, também, que essas pessoas seriam as menos capazes de reconhecer que, quando fazem bem seu trabalho, os magis- trados buscam, sim, colocar a lei e a Constituição, segundo sua interpre- tação, acima de preferências políti- cas ou ideológicas. É uma postura independente que fanáticos dessa ou daquela causa raramente entendem. Agora, se o sonho dos otimistas dificilmente se materializará, pode- -se dizer o mesmo do temor dos pes- simistas. Da minha parte, acho uma decisão apertada. Eu, que como pro- fessor universitário esmiucei durante anos decisões famosas da Suprema Corte emsala de aula, virei umgrande fã das decisões em formato escrito. Quando – como geralmente é o caso comtemas importantes –háumenten- dimentomajoritário e votos dissiden- tes, o aluno pode ver como ummagis- trado defende sua posição e como outros juízes respeitosamente discor- dam por suas próprias razões, cuida- dosamente colocadas no papel. É aqui que a ênfase deve estar – e, se a proi- bição de câmeras sublinhar isso, creio que podemos ser gratos à norma. ■ michael schudson é professor de jornalismo e sociologia (docente-associado) na Columbia University. Publicou, entre outros livros, The Rise of the Right to Know (A Escalada do Direito ao Conhecimento) e, com C.W. Anderson e Leonard Downie Jr., The News Media: What Everyone Needs to Know (A Imprensa: O Que Todos Precisam Saber). registradas para a posteridade. No final das contas, provavelmente é barulho demais por muito pouco. Haveria risco de perder algo de sole- nidade? Ninguém nunca disse que fotógrafos em casamentos diminuem a solenidade da cerimônia. E, com ou sem câmeras, Kennedy tem razão quando afirma que o que importa não é o que umministro pergunta durante os debates, mas o voto que deixa por escrito ao final do processo. Se não há razão particularmente convincente contra a transmissão, há algum argumento forte a favor? Certamente há motivos para o público ser convidado ao julgamento de certos crimes. AConstituição ame- ricana (emsua Sexta Emenda) garante a todo indivíduo acusado de umdelito o direito a um “julgamento célere e público”. A publicidade, nesse caso, seria uma forma de vigilância sobre o juiz, um incentivo para que sua con- duta seja correta e ciosa dos direi- tos do réu. Decisão apertada Éalgo importante,maspoucorelevante para um tribunal de apelação, como a Suprema Corte americana, que não julga réus diretamente, mas decide se instâncias inferiores agiram em con- sonância com a Constituição. Nesse caso, porém, creio que “con- texto é tudo”. Não imagino que o público vá achar uma argumenta- ção oral transmitida pela TV fasci- nante, ou mesmo compreensível, se não vier acompanhada de comentários esclarecedores de um especialista. A ministra Elena Kagan teria frustrada sua esperança de que o povo apren-
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