Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018

14 JULHO | DEZEMBRO 2018 mar o imperador. Foi esse aí, o imperador Napoleão III, o tal que levou Karl Marx a dizer que “a história se repete: a primeira vez como tragédia e a segunda, como farsa”. Luís Bonaparte teria sido, portanto, a farsa bonapartista, ou o bonapartismo como farsa. Por bonapartista, então, não devemos entender necessa- riamente umditador, ou um fascista descarado. Umchefe que não respeita os freios e contrapesos que são consti- tutivos do Estado moderno e que é eficaz em fazer valer sua vontade acima das instituições já preenche os requi- sitos para o qualificativo. No século 20, o fascismo teria sido um dos vários exemplos de bonapartismo se não tivesse extrapolado para o totalitarismo ditatorial. Sem- pre que um dirigente, entronizado no aparelho do Exe- cutivo, desenvolve ações para se impor ao arrepio dos ritos habituais da democracia, é comum que se diga que nele se manifestam elementos bonapartistas. Podemos ver isso em Hugo Chávez ou em Donald Trump, apesar das enormes diferenças que os separam. Há aspectos de bonapartismo emDaniel Ortega, na Nicarágua, e emVla- dimir Putin, na Rússia. Fraude autoritária Em comum, esses personagens parecem fundir numa só as linhas de comando comas linhas de comunicação entre o Estado, centralizado na pessoa de seu líder máximo, e a sociedade. O bonapartismo não se resume a uma forma de comando: é também uma forma peculiar de comunicação direta entre o tiranete e as massas. Dessa forma, cria difi- culdades ou obstáculos intransponíveis para os proces- sos decisórios do Estado de Direito e da sociedade demo- crática. É uma espécie de “quemmanda aqui sou eu” que, não obstante, engendra maneiras de preservar as aparên- cias mínimas ou residuais, emgraus diferentes, de norma- lidade. Trata-se de uma farsa autoritária. Temsido bastante frequente ouvirmos a palavra “bona- partismo” associada, logicamente, ao Poder Executivo. Comefeito, omais habitual é que o Poder Executivo esteja no epicentro do fenômeno bonapartista. Mais rara, mas não inédita, é que se caracterizem como bonapartistas posições excepcionais, mais extravagantes, de autorida- des judiciárias. Já se falou, aqui e ali, de “bonapartismo judicial”. O neologismo jusbonapartismo , este sim, tal- vez nunca tenha sido invocado. Parece, todavia, que ele se aplica a situações contemporâneas no Brasil. São bastante conhecidos – e têm sido exaustivamente examinados – os episódios em que decisões do Poder Judiciário, em diversas instâncias, atravessam garantias da vida democrática para criar embaraços autoritários contra direitos e liberdades. Não, não precisamos falar aqui dos exageros universalmente reconhecidos prati- cados pela autoridade judicial durante a Operação Lava Jato. Há muitos outros exemplos dessas “atravessadas” do Judiciário. Lembremo-nos, entre outras, das medidas judiciais que, afrontando a Constituição e a legislação ordinária, atendem a demanda de políticos que pedem a censura de reportagens investigativas. Imprensa amordaçada Uma dessas pequenas tragédias (ou farsas) foi a censura judicial contra o jornal O Estado de S. Paulo , que se viu impedido de publicar suas apurações sobre aOperaçãoBoi Barrica, na qual estava implicada a família Sarney. É bem verdade que, como outros veículos de imprensa noticiaram amplamente aquela investigação, a censura judicial contra o jornal o Estadão acabou caindo no vazio (e no ridículo), mas o fato constrangedor é que, até hoje, amedida judicial da censura contra o jornal, que é de 2009, está em vigor. O Supremo Tribunal Federal (STF), apesar dos pedidos de reconsideração, não a reformou até agora. Formalmente, o jornal O Estado de S. Paulo está até hoje sob censura. Há que se reconhecer que, em outros casos de censura judicial, o Supremo tem expedido orientações em defesa da liberdade (o caso de O Estado de S. Paulo é uma exce- ção). Não deixa de chamar a atenção, entretanto, que o protagonismo autoritário de juízes que dão curso a pre- tensões censórias de políticos esteja sendo freado não pela legislação, mas por medidas adotadas na cúpula do Judiciário. Temos aí um protagonismo judicial “do bem” (o que repele a censura) contra umprotagonismo judicial “do mal” (que defere e impõe a censura). Aí, o “do bem” está ganhando, pouco a pouco. Melhor assim. Acontece que, em muitas outras situações presentes, o Poder Judiciário resolve o que será feito, mesmo que isso implique contradizer o que está expresso na Consti- tuição Federal. Mais exemplos? Vamos lá. Quando Dilma Rousseff sofreu seu controverso impeachment, em 2016, deu-se algo de absolutamente espantoso. A preposição “com”, usada pelo artigo 52 da Constituição Federal, con- verteu-se, sem mais nem menos, na preposição “sem”. Não vale dizer que, naquele episódio, a decisão foi tomada pelo Senado Federal e que o Poder Judiciário não tinha nada a ver com o processo. Não vale. Aquele julgamento, como tinha de ser, foi presidido por ninguémmenos que o então presidente do Supremo Tribunal Federal, e foi ele, em pessoa, quem apresentou de viva voz a justifica- tiva jurídica que dava sustentação a essa inversão semân- tica, pela qual o “com” virou “sem”. REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 15 Para que fique mais claro: o artigo 52 da Constituição prevê que, na hipótese de impeachment, a pena é “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”. Apesar disso, aquele julgamento, presi- dido, conduzido e orientado pelo presidente do STF, resol- veu que a pena deveria ser “perda do cargo sem inabilita- ção”. Oepisódio ficouna história recente dopaís comouma espécie de Rubicão semântico na jurisprudência pátria. Haja hermenêutica Outra demonstração de que o Poder Judiciário dá ao texto constitucional o sentidoquebementende aconteceuquando o Supremo decidiu, em 2018, que o réu deve começar a cumprir sua pena a partir da sua condenação por umcole- giado de segunda instância – antes do trânsito em julgado, pois o trânsito em julgado só se dá nomomento emque não cabemmais recursos processuais de nenhuma natureza. Não importa aqui a opinião do leitor. Não importa a opi- nião de ninguém. Não importa, nemmesmo, se é melhor autorizar o cumprimento da pena já a partir da condena- ção em segunda instância (e talvez seja mesmo melhor; é assim na maior parte dos países sérios). O ponto compli- cado é que a Constituição, em seu artigo 5º, inciso LVII, estabelece, comexplicitude ofuscante, que “ninguémserá considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Ora, como alguém pode cumprir pena se ainda não pode ser considerado culpado? Data venia , haja hermenêutica. O STF pode reescrever o texto constitucional? Se pode, o que temos no Brasil, sem tirar nem pôr, é a materialização do neologismo que dá título a este artigo: o que temos no Brasil é o jusbonapartismo. As evidências dessa tendência são profusas, inúmeras, densas, acachapantes. De uns tempos para cá, são mui- tos os estudiosos da área que atestam: o Supremo – ou, de modo amplo, o Judiciário – legisla e governa, além de, nas horas vagas, julgar. O detalhe – que não é bem um detalhe, pois é um “detalhe” que muda tudo – é que não se deve culpar o Judiciário por isso. Nesse ponto, é pre- ciso cuidado. A culpa pelo protagonismo exacerbado não é dos magistrados. Como há uma clara carência de legi- timidade cercando as autoridades do Executivo, e como há uma exasperante crise de credibilidade no Legisla- tivo, irrompe no país inteiro um vazio que vem clamar por alguém que resolva as coisas – e esse alguém só pode ser a autoridade do Poder Judiciário. Comou semexplicações, comou sematenuantes, o fato é que essa distorção, ou essa força de sucção que impele o Poder Judiciário a extrapolar seus domínios e ocupar o vácuo deixado pelos outros dois poderes, desvirtua a dinâmica interna do Estado e desvirtua as relações entre Estado e sociedade. A isso sobrevém, então, o que esta- mos chamando aqui de jusbonapartismo. O ativismo do Judiciário não chega a ser uma jabuti- caba, que só existe no Brasil. Emoutros países ele também tem aparecido. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde o Executivo não sofria crise de legitimidade, a Suprema Corte acabou decidindo a eleição presidencial de 2000 no lugar dos eleitores. Por cinco votos a quatro, os juízes derama Presidência a GeorgeW. Bush, que teve nas urnas 543.895 votos amenos do que Al Gore. A bemda verdade, diga-se que a Suprema Corte não afrontou, ao contrário da nossa, a Constituição do país, que instituiu umexótico Colégio Eleitoral (uma jabuticaba americana, no caso) no qual quem tem menos votos dos eleitores pode ganhar a eleição. Mas ela convalidou, de modo dúbio do ponto de vista jurídico e inequivocamente partidário do ponto de vista político, decisão de autoridades eleitorais do estado da Flórida que legitimara 537 duvidosos votos para Bush que deram a este a maioria naquele estado e, com ela, a maioria no tal Colégio Eleitoral. Juízes jornalistas Mas, na perspectiva da nossa revista, que se ocupa de temas ligados ao jornalismo, não importa tanto pensar o jusbo- A imagem de uma Medusa de cuja cabeleira despontam 11 serpentes, cada qual com uma cabeça e uma sentença, é tentadora

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