Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018
16 JULHO | DEZEMBRO 2018 napartismo em termos sociológicos, jurídicos, ou ainda nos contornos da ciência política. Em vez disso, o que é imperioso, aqui, é tentar jogar luzes sobre o fenômeno no âmbito da comunicação social e, mais ainda, nos domínios da imprensa. Épor aí, pelas vias da comunicação social, que a hipertrofia dos poderes do Judiciário distorce o debate político na esfera pública e interfere nas mentalidades em disputa na sociedade civil. Quanto a isso, a nossa impressão é que, além de tomar posse de incumbências que caberiam aos outros dois poderes, o jusbonapartismo vemavançando também, e de modo agressivo, sobre o papelmediador que originalmente pertenceria à imprensa. Note bem o leitor: a imprensa, como instituição não estatal e, portanto, como um ente que atua no debate público sem compromissos orgânicos comos poderes do Estado, não pode faltar ao jogo demo- crático. A definição mesma de democracia prevê e pre- coniza essa função articuladora da imprensa, vista aqui como instituição. Qualquer desvio, qualquer ruptura com essa receita, com esse modelo, corrompe a normalidade democrática. O que dizer então quando autoridades do Poder Judiciário se antecipam à mediação da imprensa e passam a conduzir certos filamentos do debate público, em linha direta com as massas? Nos estados autoritários em que o Executivo trans- borda para alémde seus contornos, como é o caso da Rús- sia, o governante amofina a imprensa ao criar seus pró- priosmeios “jornalísticos” (aspas indispensáveis). É o que Putin vem fazendo, em escala, sem exagero, planetária: seus escritórios de jornalismo governista estão instalados em dezenas de países. No contexto brasileiro, devemos atentar sobre o modo pelo qual o Poder Judiciário vem ocupando o papel de se comunicar diretamente com o público, atropelando amediação crítica que só a imprensa é capaz de desempenhar. Cada vezmenos os magistrados falamno processo. Cada vezmais falampara os holofotes. O dado intrigante não é apenas a TV Justiça, que trans- formou as sessões do pleno do STF numa espécie de “rea- lity show” de mau gosto. Diante de tudo o que vem acon- tecendo, convenhamos, a TV Justiça – a despeito de seu sensacionalismo togado, a despeito de ter se rebaixado a umpicadeiro dentro do qual osministros se sentemà von- tade para trocar ofensas pessoais, como se aquilo fosse um auditório desses programas policialescos que se amon- toam na programação vespertina da televisão comercial – talvez seja o que menos preocupa. No centro das atenções Para voltar à comparação com os Estados Unidos, lá as câmeras (inclusive fotográficas) são proibidas nas ses- sões da Suprema Corte. O máximo que se permite é que alguém desenhe os rostos dos participantes de suas ses- sões. Com isso, os juízes americanos são muito mais dis- cretos que os nossos ministros, embora em anos recentes alguns comecem a aparecer umpouco em excesso para os padrões locais em eventos públicos. Mas rarissimamente, quase nunca, emprogramas de TV. O rosto dos nove juízes é quase desconhecido da maioria dos cidadãos. Nenhum deles a andar nas ruas de Lisboa seria filmado em celula- res de conterrâneos indignados com seu comportamento. Os expedientes que vêm permitindo aos ministros do Supremo e outros juízes açambarcar, ou tomar para si, as funções dos jornalistas incluem, entre outras ferramentas, o uso arbitrário e não oficial de informações sobre pro- cessos em curso para fins de fortalecer a si próprios. Não se trata deministros, desembargadores ou juízes que dão entrevistas eventuais, tendo em vista o atendimento do direito do cidadão à informação. O que temos visto é algo inteiramente distinto: o uso estratégico de dados sigilo- sos para instrumentalizar a imprensa de modo a orientar a formação da opinião pública numa determinada dire- ção, direção essa que favoreça, no fim da linha, as inten- ções ocultas daquela mesma autoridade judicial. A ins- trumentalização da imprensa segundo omanuseio e o uso seletivo de aspectos isolados de processos judiciais é um Nomes do Judiciário são citados para ocupar postos políticos, inclusive o de presidente da República. Onde termina o tribunal e onde começa o palanque? REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 17 tema da mais alta relevância para o que vem se confor- mando como jusbonapartismo . Como já foi anotado aqui, o bonapartismo não se resume a um estilo autoritário de governar ou de usurpar pode- res indevidos. Antes, o bonapartismo supõe, por defini- ção, uma via direta de comunicação entre o governante e o povo, pela qual o mesmo governante desenvolve meios de manipular, também diretamente, a formação da opi- nião pública e da vontade dos cidadãos. É daí, em grande medida, que o bonapartismo extrai sua força ilegítima. Passando ao jusbonapartismo , temos verificado que essa habilidade foi perfeitamente assimilada por integran- tes do Judiciário, em diversos níveis, com estratégias de diversos alcances. Por essa técnica, setores do Judiciário (numa prática adotada também por setores do Ministé- rio Público – MP), primeiro “vazam” ou deixam vazar um dado crítico na imprensa e, depois, usam a matéria de imprensa para instruir ou fundamentar decisões (ou ações, no caso do MP). Quando consultados, os magistrados alegamque estão compartilhando informações com os cidadãos, mas, no fundo, estão apenas tentando instrumentalizar as infor- mações que dizemcompartilhar. Emsua estratégia (bona- partista), estabelecemumcontato assimétrico, não dialó- gico, com os jornalistas. Dirigem unilateralmente o pro- cesso comunicacional e agem para se pôr a salvo da fun- ção fiscalizadora dos repórteres, muitos dos quais talvez devessem ser mais críticos e seletivos em sua atuação para não convalidar o esquema. Apoteose exibicionista Não nos esqueçamos de que, recentemente, medidas judiciais tentaram obrigar jornalistas a revelar suas fon- tes, violando, aqui também, as garantias postas pelo artigo quintodaConstituição. Tambémesse excessonão foi casual. Também ele não foi acidental. Não foi atípico. O jusbona- partismo gosta da imprensa quando ela lhe serve de asses- soria de comunicação estratégica. Não gosta da imprensa quando ela é crítica e independente. Isso sem falar nos magistrados que, sem a menor ceri- mônia, distribuemdeclarações no atacado e no varejo,mais públicas ou mais indiscretas, sobre matérias que ainda deverão julgar. Convocam a plateia para apoiar decisões que ainda serão chamados a tomar no curso do processo. O jusbonapartismo declaratório antecipa emanipula odevido processo legal. Para recorrer mais uma vez ao exemplo americano, nos Estados Unidos é simplesmente inconce- bível um juiz da Suprema Corte manifestar opinião sobre um caso que irá julgar. Se algum o fizesse, anularia o caso e certamente seria alvo de um processo de impeachment. Não é só. A apoteose exibicionista a que os ministros do Supremo e alguns desembargadores e juízes de pri- meira instância vêm se entregando sabota de modo vir- tualmente irreversível o lugar ideal do Judiciário, que requer a serenidade equidistante do julgador. Os minis- tros do Supremo, por melhores que sejam – e são com- petentes, preparados –, bemcomo alguns desembargado- res e juízes, foramconvertidos não pelas leis do Estado de Direito, mas pelas leis do espetáculo (estamos falando de Guy Debord), em celebridades a toda prova. Os ministros do Supremo talvez não sejam, como John Lennon acredi- tava que era, mais famosos do que Jesus Cristo, mas não estão longe disso. Como virou chavão dizer no Brasil, eles sãomais populares do que jogadores da seleção brasileira de futebol. Isso potencializa o fator “espetáculo” no jusbo- napartismo. Ministros do Supremo e um ou outro juiz de primeira instância rivalizam em cintilâncias impróprias comestrelas de televisão e socialites de extrações sortidas. A porta giratória – mais do que inadequada – que sem- pre existiu entre a cúpula do Judiciário brasileiro e a car- reirapolítica, escancarou-se aindamais. A todahora, vemos aventados nomes do Judiciário para ocupar postos polí- ticos, inclusive o de presidente da República. Onde ter- mina o tribunal e começa o espetáculo? Onde termina a corte e começa a campanha eleitoral? Infelizmente, não conseguimosmais enxergar comclareza a linha divisória. O quadro é preocupante, sobretudo para a imprensa e para a função da imprensa , que se desidrata sob o calor causticante do jusbonapartismo . O quadro é tão mais pre- ocupante quanto mais se observa que – no caso particu- lar do Supremo – o Poder Judiciário na verdade não é um só, mas são 11. Cada um dos ministros decide como quer sobre o que bem (ou mal) quer. Falta-lhes o carisma, sem dúvida, mas não o personalismo. A segurança jurídica se esvai. A segurança jurídica não dá ibope. A segurança jurí- dica é semgraça. A imagemde umaMedusa de cuja cabe- leira despontam 11 serpentes, cada qual com uma cabeça e uma sentença, é tentadora. A percepção de que essas 11 cabeças performáticas se deixam guiar por vaidades pró- prias é aterradora. Estamospetrificados. Coma imprensade escanteio, não há Perseu à vista. A caverna não temsaída. ■ eugênio bucci é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e membro do Conselho Editorial da Revista de Jornalismo ESPM . carlos eduardo lins da silva é livre-docente em comunicação; foi diretor-adjunto da Folha de S.Paulo e do Valor e é editor da Revista de Jornalismo ESPM.
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