Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018

18 JULHO | DEZEMBRO 2018 não foi belo o espetáculo do desnudamento da Justiça brasileira. Todos assistimos, ao vivo, a desentendimentos públicos entremagistrados, à exibição de posições faccio- sas, a interferências no debate político, ao extravasamento de opiniões pessoais, a pronunciamentos corriqueiros fora dos autos, a palpites sobre fatos diversos, à ambição des- medida por projeção, à mobilização política por parte de quem se espera prudência, imparcialidade e discrição. * Essa superexposição acontece em detrimento da sole- nidade ritual que se costuma associar à ideia de Justiça, ponto institucional de equilíbrio entre poderes e garantia de cumprimento da lei. Tradicionalmente, ela é tão mais respeitada quanto mais se eleva sobre os grupos que se engalfinham na disputa pelo domínio político. Esse é mais um sinal dos tempos atuais, em que o diá- logo democrático cede lugar a discordâncias fanáticas. A sociedade se dilacera em antagonismos, sem encontrar uma via de solução institucional de conflitos. Nessas circunstâncias, é oportuno perguntar se a trans- missão em tempo real dos julgamentos, que ocorre ao menos desde 2002 pela TV Justiça, pode ter contribuído, de alguma forma, para o atual estado de desgoverno. O tema é polêmico, aqui e em outros países, pois está entremeado de contradições. As câmeras favorecem a prestação de contas à sociedade e estimulam o exibicio- nismo. Aproximam a Justiça do cidadão e afastam os jul- gadores entre si. Esclarecem sobre o funcionamento das cortes e desgastama sua imagem. Favorecemuma cultura de acompanhamento dos trabalhos judiciais e expõem a independência dos juízes a pressões indevidas. Do obscurantismo das sessões secretas à superexpo- sição televisiva, ainda não encontramos uma boa res- posta institucional para definir qual é a medida de publi- cidade mais compatível com a função social que o juiz desempenha. A controvérsia não tem necessariamente a ver com a posição social do observador, e sim com questões mais complexas de princípio. Há uma grande dificuldade de escapar aos extremos, como se nossas instituições falhas- sem em apontar o caminho do meio. Antes da reforma do Poder Judiciário, que almejava torná-lo mais simples, ágil, acessível e transparente, era um clichê comparar a administração judiciária a uma caixa preta . Não há indícios, contudo, de que, a despeito de todo excesso de projeção midiática, ela tenha se trans- formado em uma caixa de vidro. Ao que consta, a transmissão ao vivo de julgamentos do Supremo Tribunal Federal é uma originalidade bra- sileira. Essa não é a regra em outros países, apesar da diversidade de modelos que prestigiam mais ou menos a publicidade do processo deliberativo. O segredo impenetrável das sessões da Suprema Corte dos Estados Unidos, por exemplo, é emblemático da posição contrária, que também reúne países como Ale- manha e França. É difícil dizer se o Brasil está na vanguarda da transpa- por luiz armando badin A justa medida da publicidade Quando o diálogo cede lugar a discordâncias fanáticas, vale investigar qual o papel da TV Justiça no atual estado de desgoverno * Agradeço a André Coletto, Guilherme Balbi e Talita Cruz pelo auxílio na pesquisa e revisão do texto. REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 19 rência ou do exotismo. Parece mais útil mapear os argu- mentos favoráveis e contrários ao julgamento televisivo, antes de afirmar qualquer conclusão definitiva. Conhe- cer os diferentes pontos de vista, antes de julgar. A favor da transmissão A Constituição é o ponto de partida para a defesa da mais ampla publicidade. Ela afirma que “todos os julgamentos dos órgãos doPoder Judiciário serão públicos, e fundamen- tadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. Embora a norma proíba as sessões secretas, admitem-se, excepcio- nalmente, restrições à regra da publicidade, especialmente em casos nos quais “a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” (art. 93, IX). Quempode estar presente ao julgamento, nomomento em que ele acontece? As partes, os advogados e qualquer um que se apresente à sessão. Num sentido mais amplo, por que então não todos os telespectadores sintonizados no canal da TV Justiça? Se a sessão é pública, por defini- ção constitucional, não haveria por que encerrá-la a por- tas fechadas, para poucos presentes. A TV Justiça, em si, presta um serviço de comunica- ção pública útil aos cidadãos. A transmissão dos julga- mentos, que ela proporciona, torna possível o acompa- nhamento das sessões em tempo real. Profissionais, par- tes e estudantes que não teriam condições de se deslocar a Brasília podem assistir ao debate constitucional. Isso aumenta o interesse e a consciência sobre decisões que afetam toda a sociedade. De maneira resumida, a transmissão dos julgamen- tos pode ser considerada um avanço institucional pois: (a) expõe as nuances dos temas constitucionais, sensibi- lizando os cidadãos para discussões relevantes na esfera pública; (b) transforma o tribunal em fórummais aberto e democrático; (c) aumenta a legitimidade das decisões dos ministros; (d) permite que colegas e clientes acom- panhem o desempenho dos advogados; e (e) favorece a fiscalização popular. Nem todos pensam assim. Contra a transmissão Os profissionais acostumados à vida judiciária sabemque nenhummeio tecnológico reproduz fielmente a realidade de um julgamento público. Ele se desenvolve, como num teatro bem atuado, entre pessoas presentes. A exposição de razões jurídicas, a atenção do público, a reação dos magistrados, os sinais da presidência, o estre- mecimento das partes, a contundência do veredito: quando todos os presentes respiram o mesmo ar, nenhum desses detalhes escapa ao observador atento da cena judiciária. A decisão justa surge de um processo dialético autêntico, e não da entorpecente celebração de um ritual vazio, muito menos de arroubos farsescos de autoridade. O julgamento televisionado, por sua vez, transmite uma outra realidade, para umauditório indeterminado. O julga- dor então se dirige a umamassa de pessoas desconhecidas. Se atua como protagonista, tende a roubar a cena dos demais. Numa ordem jurídica funcional, porém, há limi- tações para a intervenção dos juízes na esfera política. Se eles clamam diretamente ao povo, semmediações, e pas- sam a expressar suas visões particulares de mundo, ten- dem àquele desarranjo institucional que a teoria cons- titucional convencionou chamar de governo dos juízes. Odesvirtuamento é potencializado pelomeio televisivo, na medida em que as razões jurídicas podemmuito facil- mente ceder espaço ao populismo judicial. Nessa linha, há jornalistas que criticam o “vedetismo togado” e sus- tentam que a Justiça não é um reality show , aos moldes de programas de sensacionalismo policial na TV. Os advogados criminalistas, por sua vez, tendem a ver com ressalvas a ampla publicidade dos julgamentos. Segundo eles, a prática pode induzir a uma campanha de mídia para pressionar indevidamente o magistrado. Alguns argumentam que a “publicidade opressiva” traria consequências tão danosas para o réu que deveria ensejar a suspensão do julgamento, durante um “frenesi” conde- natório, ou quando ela servisse a um linchamento virtual. O direito fundamental a um julgamento justo perante juiz imparcial, para esses críticos, prevaleceria sobre o trial by news media, e a presunção constitucional de ino- cência sobre a especulação sensacionalista. Em síntese, os argumentos contrários ao julgamento transmitido em tempo real apontampara os seguintes ris- cos: (a) desgaste da imagem do tribunal; (b) incentivo à afirmação de posições individuais, emdetrimento do cole- giado; (c) prejuízo ao debate espontâneo e à qualidade da fundamentação das decisões; (d) espetacularização do julgamento; (e) abuso da retórica; (f ) inibição do papel de afirmar direitos constitucionais mesmo contra a von- tade da maioria ou das correntes predominantes de opi- nião; (g) prejuízo à independência e à impessoalidade; (h) aumento do tempo dos julgamentos; e (i) exposição exces- siva dos réus, emdetrimento da sua dignidade. Critica-se, portanto, a vulgarização dos julgamentos televisivos, que se tornam mais suscetíveis às paixões das massas do que às razões dos juristas. Quando a racionalidade jurídica cede lugar aos clichês, os direitos fundamentais sofrem.

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