Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018

20 JULHO | DEZEMBRO 2018 De um lado, temos o direito à informação e o princípio da publicidade. De outro, garantias fundamentais, como a presunção de inocência e o direito a um julgamento imparcial, preservado de pressões externas imoderadas. Busca-se umequilíbrio entre o diálogo legítimo e necessá- rio com a opinião pública, as garantias de independência dos magistrados e os direitos constitucionais das partes. Mesmo no âmbito da teoria democrática, indaga-se se o excesso de publicidade de aspectos acessórios pode obs- curecer a transparência dos essenciais. Se a propensão ao segredo é típica das ditaduras, a publicidade opres- siva pode fragilizar as democracias imaturas. Publicidade não é superexposição A transparência é o resultado de um esforço político deli- berado. Opoder obedece a pelomenos duas leis fundamen- tais: tende, inexoravelmente, tanto a se concentrar como a se esconder. Omovimento contrário, no sentido da publi- cidade e da transparência, resulta de vontade consciente e deliberada. Depende, emsuma, de uma construção política. As políticas de transparência precisam ser desenvolvi- das e aprofundadas. Não chegam a revelar, todavia, tudo que seria importante saber a respeito do funcionamento das instituições. É aí, precisamente, que reside boa parte do poder real, que dá a conhecer o que lhe interessa e oculta o que não lhe convémmostrar. Parte de uma posi- ção de vantagem, que só pode ser vencida pelo funciona- mento livre e responsável da imprensa, desde que com- prometida com a exatidão, o pluralismo, a objetividade e a busca sincera e honesta da verdade. Tanto mais confiança merecerão as instituições, de regra, quanto mais publicamente funcionarem. Isto é, serão tão mais legítimas quanto mais visível for o exer- cício real do poder, ainda que se admitam excepcional- mente alguns temperamentos. Por outro lado, e a bem da verdade, a crítica aos julga- mentos televisionados se dirige não tanto ao regime de publicidade, mas aponta para a necessidade de algum grau de proteção ao processo de construção do argumento racio- nal que será tornado público . Esses críticos demodo algum prescindem da regra da publicidade. Apenas sustentam que parte do processo decisório em que se forma a con- vicção do juiz pode ser resguardada, desde que a motiva- ção se torne publicamente controlável depois , e se apre- sente como um todo coeso, completo e racional. Segundo eles, isso diminuiria conflitos e criaria um ambiente mais favorável para a tomada de uma boa decisão. Essa é a linha da política adotada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que admite uma certa reserva para proteger os trabalhos preparatórios das decisões. Invoca- -se uma razão de interesse público: permitir a franqueza das discussões, buscando realizar a melhor escolha. Quem dirige um discurso a um auditório sabe distinguir a fase reservada do processo de formação do argumento do momento em que ele é publicamente exposto. Seria assim com o processo durante o qual se prepara a moti- vação que será futuramente tornada pública. Adiscussão sobreo televisionamentopodedesviar oolhar de outras pautas importantes, fazendo erradamente supor que se alcançou, com a TV Justiça, um grau superior de transparência. O sistema judiciário temainda alguns pon- tos cegos . O processo de nomeação de magistrados, a dis- tribuição dos casos entre os ministros, o critério de orga- nização da pauta de julgamento, a completude dos funda- mentos expostos nos acórdãos, as prioridades orçamen- tárias, a tributação de verbas indenizatórias, as vincula- ções partidárias, os pretextos que mal dissimulam atos de pura vontade, em detrimento da legalidade objetiva: em temas como esses é oportuno buscar um desvelamento mais autêntico da realidade judicial, para alémdaquilo que os olhos podem observar através das lentes das câmeras. O mais importante é que o discurso sobre os assuntos públicos seja controlável, de maneira aberta, completa e racional, e que não se tolha a espontaneidade da discussão. Onde fica a discrição Para não terminar este balanço num impasse, é possível chegar a algumas constatações. Apesar da seriedade das críticas, a cultura jurídica e a cidadania assimilarama ideia de um processo deliberativo público. No atual estágio da evolução do direito brasileiro, é inconcebível o regresso às sessões secretas dos tribunais. Deliberações a portas fecha- das causariam desconfiança, para quem se acostumou a ver, para o bem e para o mal, a Justiça em pleno funciona- mento. É possível, contudo, pensar num aperfeiçoamento domodelo , buscando a justamedida da publicidade, consi- derando outros valores envolvidos, escutando a voz dos crí- ticos e, sobretudo, notando o exageromidiático que carac- teriza os tempos atuais. É uma exigência da democracia que os assuntos públi- cos sejam discutidos em público . Há um fundamento ético para isso. Em uma célebre passagem de seu Projeto para a Paz Perpétua, que pretendia estabelecer as bases para um acordo entre a política e a moral, o filósofo prussiano Immanuel Kant propôs que “são injustas todas as ações relativas ao direito de outras pessoas, cuja regra é incom- patível com a publicidade”. Esse princípio de morali- dade apareceu em nossa Constituição formal, ainda que o enraizamento dessas ideias em solo brasileiro tenha se demonstrado historicamente problemático. De qual- quer maneira, em algummomento de sua evolução polí- tica, o povo brasileiro projetou a ideia de que os cidadãos têm o direito de saber a verdade sobre os assuntos públicos. Do ponto de vista da ética profissional do magistrado , o REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 21 simbolismo em torno do Poder Judiciário, na sua essên- cia, de alguma forma previne o alastramento da violên- cia, ao aliviar o desejo sangrento de vingança entre pes- soas e grupos no interior de uma sociedade cada vez mais fragmentada. Contudo, não deve, ele próprio, servir de instrumento a uma coerção pública sem limites, sob pena de perder a autoridade ao apelar, cada vez mais, para exi- bições ostensivas de força, ou para a demagogia na relação direta com as massas. Quando veste a toga, não é mais o indivíduo que exprime as suas opções particulares, mas a sociedade que julga, de maneira impessoal. De acordo como filósofo e crítico literário francês René Girard, “o sistema judiciário constitui uma arma de dois gumes, servindo tanto à opressão como à liberação (...) Se atualmente sua função é visível, é porque ela escapa ao retiro necessário ao seu adequado exercício”. Ao que parece, para enfrentar a dura realidade de sua miséria institucional, de seu empobrecimento econômico, de seu declínio ético, de suas carências sociais, uma cida- dania madura pode prescindir tanto do falso heroísmo de vingadoresmascarados quanto da perseguição implacável a bodes expiatórios. A organização do sistema judiciário é justamente uma tentativa de elaboração desses instintos mais primitivos, não a sua forma vulgar de extravasamento. Entre o temor reverencial ao sagrado e a profanação exibicionista, é oportuno continuar questionando: numa democracia saudável, qual é a justamedida da publicidade dos julgamentos televisivos, emespecial, e doprotagonismo político dos juízes, de forma geral? Ou, o que émais grave, a desmistificação de um sistema de justiça superexposto emsuas contradições necessariamente coincide coma sua desagregação? Não se pode retroceder ao hermetismo. Convém aperfeiçoar as formas de publicidade. ■ exemplo deve vir de cima. Discrição e prudência são atri- butos tradicionais da função judicante, que remontam aos valores, tão caros à res publica romana, de decorum e gravitas. A tradição da cultura jurídica ainda se faz for- malmente presente no Código de Ética da Magistratura. Há normas afirmando que o comportamento do juiz, paramerecer o respeito da comunidade emque vive, longe de dar vazão ao sentimento vingativo de cólera social, tem sempre mais a ver com prudência, discrição, diligência e moderação, em qualquer circunstância. O magistrado deve olhar mais para as provas dos autos do que para as manchetes. Preferir a clareza e a precisão das razões jurídicas às frases de efeito. Justificar publicamente suas decisões e dialogar com a sociedade, mas não se deixar mesmerizar pelos holofotes. Ser aberto, mas não sub- misso à opinião pública. Um juiz modelar, segundo a tradição, não pode agir de forma temerária nem negligente. Sacrificar a indepen- dência para receber os afagos do público é também uma forma de corrupção dos costumes judiciários; a captura pela vaidade certamente compromete a imparcialidade inerente à noção de um julgamento justo. Se o persona- lismo é um vício conhecido do sistema político brasileiro, é ainda mais grave quando aparece num poder que deve- ria ser, rigorosamente, o mais impessoal de todos. Em tempos nos quais o espetáculo do abuso de autori- dade é mais prezado do que a severidade da cultura jurí- dica, convémrevisitar as lições da sabedoriamais antiga. Os deveres queCíceropreconizavapara asmagistraturas roma- nas, emgeral, valem tambémpara os juízes, emparticular. Um pouco de sabedoria Todos os que estiverem encarregados de assuntos públi- cos devem então “proteger os interesses dos cidadãos de modo tal que, façam o que façam, sempre levem em conta esse interesse, esquecidos do seu próprio. Ocupem-se com todo o corpo da República e nunca, ao proteger uma parte, esqueçam as outras. Como na tutela, a República deve ser gerida tendo emmira a utilidade dos administrados e não dos administradores. Já os que deliberampara uma parcela dos cidadãos e negligenciam outra introduzem na cidade algomuito pernicioso, a sedição e a discórdia. Sucede então que alguns pareçamsimpáticos aopovo, outros aos patrícios, pouquíssimos a todos” (De officiis, XXV.85). A imprensa res- ponsável, por sua vez, deve se abster de açularmagistrados para que se comportemcomo cães de caça, conduzindo-os pela coleira da vaidade. O jornalismo deve revelar o que não se dá facilmente a conhecer apenas por imagens, mas somente pelo trabalho diligente de investigação. Como observam alguns antropólogos, entre o misté- rio das máscaras rituais primitivas e a profusão das ima- gens virtuais contemporâneas, é preciso recordar que o História Oral do Supremo . RJ. EDFGV, 2017. Bucci, Eugênio. “Justiça Não É Reality Show”. Revista Época , 5.12.13. Cícero, Marco T. Dos Deveres . São Paulo: Martins Fontes, 1999. Girard, René. A Violência e o Sagrado . São Paulo: Paz e Terra, 1990, p. 36. Horbach, Carlos B. “TV Justiça é Instrumento para Aprimorar o Judiciário”. Conjur. 10.3.14. Pereira, Flávia Rahal Bresser. “A Publicidade no Processo Penal – Confronto com o Direito à Intimidade”. Dissertação. FADUSP. Bastos, Márcio T. Júri e Mídia . Tribunal do Júri: Estudo sobre a Mais Democrática Instituição Jurídica Brasileira. RT. 1999. p. 112. Silva, Virgílio A. da; Mendes, Conrado H. “Entre a Transparência e o Populismo Judicial”. FSP. 11.5.2009. BIBLIOGRAFIA luiz armando badin é advogado, doutor em direito pela Universidade de São Paulo, especialista em direito público pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Foi secretário de assuntos legislativos do Ministério da Justiça e dirigiu a consultoria jurídica da pasta entre 2003 e 2006.

RkJQdWJsaXNoZXIy NDQ1MTcx