Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018
22 JULHO | DEZEMBRO 2018 “julgo procedente a ação de...” . Antes que a juíza ter- minasse de ler a sentença, a autora da ação, em prantos, pôs-se a bradar, a plenos pulmões: “Mas o pai é ele, eu juro. O pai é ele, é ele, eu juro que é ele”. A juíza inter- veio e disse: “Calma! Por que o choro? A senhora ganhou a causa!”. E a autora: “Mas a senhora disse que ia me pro- cessar...”. Como se vê, a autora da ação pôs nomesmo balaio semântico palavras como “procedente” e “processar”. Se para muitas pessoas um mínimo vestígio de linguagem formal – seja qual for a sua aplicação – é um drama, um labirinto, imagine-se o que lhes causamcertos pronuncia- mentos dos “operadores do direito”. O fato que relatei não resulta da minha fantasia. A juíza em questão é Andrea Pachá, que durante algum tempo trabalhou na Vara da Família do Estado do Rio de Janeiro. Foi a própria Andrea que, em 2003, contou essa história a alunos de diversas faculdades de direito do país durante uma campanha da Associação dos Magistrados Brasilei- ros (AMB) pelo fim do juridiquês. Aliás, o nome da cam- panha era justamente “Pelo Fim do Juridiquês”. Capitaneada à época por Rodrigo Colaço, hoje desem- bargador e presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a AMB contratou-me para ser o porta-voz da parte linguística dessa campanha. Colaço, Andrea, outros magistrados e eu percorremos várias faculdades de direito do país para levar aos futuros “causídicos” a ideia do fim do juridiquês. Ao preparar-me para a empreitada, desco- bri nos textos que circulam no ambiente jurídico, entre outras pérolas, preciosidades como “cártula chéquica”, “ergástulo público”, “digesto obreiro”, “cônjuge supérs- tite” etc. etc. etc. Antes que alguémpergunte, lá vai: o tal “digesto obreiro” nada mais é do que o compêndio mais conhecido por “Consolidação das Leis do Trabalho”; o “ergástulo” é simplesmente a cadeia, a prisão, o cárcere; o “cônjuge supérstite” é o viúvo ou a viúva. E a gloriosa “cártula ché- quica”? Embora desconfiasse do significado, só consegui confirmá-lo consultando os próprios magistrados que me acompanhavam nas caravanas. Nenhum dicionário registra o preciosíssimo adjetivo “chéquico”. Também não há registro dessa beldade no Vocabulário Ortográ- fico da Língua Portuguesa (Volp), editado pela Academia Brasileira de Letras. Os colegas de campanha me disse- ram que a tal cártula chéquica nada mais é do que uma folha de um talão de cheques... Termos específicos O fato é que ainda há muito bolor nos porões e na ribalta da linguagemdo direito, embora – é bomque se diga – haja tambémventos revigorantes, modernizadores. Emoutras palavras, creio que não se possa mais dizer que a esmaga- dora maioria dos “operadores do direito” empregue essa linguagemmofada, que, emmuitos casos, é tambémexclu- dente, mas lamentavelmente ainda é possível afirmar que a parcela que a emprega não é pequena. A esta altura, alguém talvez já pense que este texto constitui ummanifesto pela eliminação pura e simples de todo e qualquer traço da linguagem específica do direito, incompreensível para os leigos etc. etc. etc. Não é nada disso. Uma coisa é a linguagem abolorecida, digo, embo- lorada, como a que se vê em petição (ou peça) “exordial” (ou “incoativa”), ou seja, a petição inicial, que nada mais é do que aquilo que o “causídico” (mais conhecido por Linguagem abolorecida O esforço de tirar o mofo do juridiquês ajuda a tornar o discurso de advogados e juízes mais acessível à população por pasquale cipro neto ANDRÉS SANDOVAL REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 23
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