Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018
24 JULHO | DEZEMBRO 2018 “advogado”) pede; outra coisa é o emprego de termos técnicos específicos. Em outras palavras, não se pode exigir que, a título de “simplificar a linguagem”, no ambiente do direito se substitua, por exemplo, “peculato” por “crime que con- siste na subtração ou desvio, por abuso de confiança, de dinheiro público ou de coisa móvel apreciável, para pro- veito próprio ou alheio, por funcionário público que os administra ou guarda” ( Houaiss ) ou “prevaricação” por “crime cometido por funcionário público quando, inde- vidamente, este retarda ou deixa de praticar ato de ofí- cio, ou pratica-o contra disposição legal expressa, visando satisfazer interesse pessoal” (também do Houaiss ). Salvo engano, essa “simplificação” na verdade seria uma com- plicação. Enfim, nome técnico é nome técnico, e é isso que se emprega no ambiente estrito do direito ou de qual- quer ciência, mas, quando a mensagem é dirigida a lei- gos, os termos técnicos certamente poderiam ser os ade- quados a esse tipo de receptor. Dá para ser menos técnico? Mutatis mutandis , quando um “operador do direito” usa linguagemespecífica para falar a leigos, age como omédico que conversa com o paciente empregando termos que o receptor talvez desconheça. Há um bom tempo, um dos meus filhos foi submetido a uma cirurgia. Umpouco antes da intervenção, conversei como anestesista, que, depois de me explicar o tipo de procedimento que adotaria, disparou esta pérola: “Não se preocupe. O seu filho é uma criança eutrófica”. Não lembro exatamente o que respondi, mas continuei a conversa dizendo-lhe algo que o fez deduzir que eu compreendera o que ele dissera. Sabe o queme disse o “facultativo” (mais conhecido como “médico”)? Lá vai: “Ah! Então o senhor é colega?” E eu: “Não! Sou professor de português, por isso tenho a obrigação de conhecer radi- cais gregos e latinos”. Não custa explicitar: a pergunta que o médico me fez é uma claríssima confissão da sua inabi- lidade no uso da linguagem... E se eu não conhecesse os elementos gregos que formamo adjetivo empregado pelo homem de branco? Bem, a tal da “criança eutrófica” nada mais é do que uma criança bem nutrida, saudável etc. Para escrever este texto, li muitas matérias sobre o que se diz da língua e da linguagem do “Egrégio Pretório Supremo”, ou do “Excelso Sodalício” ou do Supremo Tri- bunal Federal (STF), como queira o leitor. Tambémassisti pela TV a várias sessões (que muitas das vezes mais pare- cem tertúlias) dos nobres formadores da máxima instân- cia da nossa Justiça. Pelo que li e vi, parece que alguns (é bom salientar: alguns) integrantes do STF agem como Neymar: não sabemque existe TV ao vivo, replay etc. Se se lembrassemdisso, esses hirtosmagistrados entenreceriam a linguagem nos momentos em que, tomados de infrene, inexorável e sine qua non erudição, se vissem impelidos a suplantar o colega de toga na busca de demonstração de sapiência. Ou será que fazem o que fazem justamente porque sabem que há TV ao vivo, replay etc.? Tradução: os membros do STF poderiam, por exemplo, empregar à saciedade latinismos consagrados nomeio jurí- dico, como “ erga omnes ”, “ fumus boni juris ” (ou “ iuris ”), “ stare decisis ” etc., mas (creio eu) não perderiam nada se traduzissem imediatamente para a patuleia (como diz o grande Elio Gaspari) o significado dessas expressões. É claro que não seria preciso pedir a esses doutos que não exagerassem na “simplificação”, como fazem muitos jornalistas, que traduzem, por exemplo, “crime doloso” como “aquele em que há intenção de matar”. Ai, ai, ai... A ser seguida a sugestão dada, teríamos algo como “... erga omnes , ou seja, para todos os homens”, “ fumus boni juris/ iuris , ou seja, fumaça, indícios do bom direito”, “ stare decisis , ou seja, manter o que foi decidido”. Como se vê, não citei expressões mais do que assimi- ladas pelos leigos, como habeas corpus e data venia . Por sinal, a nossa imprensa, sempre muito criativa, anda tro- cando habeas corpus por HC, que, como se sabe, é antes de tudo uma referência mais do que consagrada ao Hos- pital das Clínicas da Faculdade deMedicina da Universi- dade de São Paulo... Não me parece das mais felizes essa troca de habeas corpus por HC. E data venia ? Essa já entrou definitivamente na lingua- gemdosmortais, muitas vezes (ou quase sempre) com tom irônico... Pois a ironia e o deboche talvez sejam justamente a marca mais presente nas referências do povo a alguns membros do STF, hoje provavelmente mais conhecidos do que os craques das torcidas dos nossos grandes clubes. Se pedirmos a corintianos, palmeirenses, flamenguistas, vascaínos etc. que arrolem os integrantes do elenco dos seus times, talvez nos surpreendamos... É provável que esses apaixonados não consigam chegar a 50% ou 60% do total do plantel, quase sempre de mais de 30 atletas. Proporcionalmente, os membros do STF sãomais conhe- cidos... E justamente por isso seria muito importante que Quando um operador do direito usa termos técnicos para falar a leigos, age como o médico que conversa com o paciente como se o doente fosse um especialista REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 25 alguns (atenção: alguns) deles mostrassem mais sobrie- dade, lhaneza, simplicidade, despojamento etc., a come- çar pela linguagem, respeito ao colega de toga, à socie- dade... Não preciso nomear os que são mais antipáticos às pessoas de bem, preciso? Para não dizer que não falei de ou das flores, ressalto a postura da ministra Cármen Lúcia, sempre sóbria, impecável. Aliás, tive com ela um pequeno “embate”, em agosto de 2016. Ao passar o bastão para a ministra, o também ministro Ricardo Lewandowski disse isto: “Então eu concedo a palavra à eminente ministra Cár- men Lúcia, nossa presidente eleita... ou presidenta?” A resposta da magistrada foi esta: “Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa, eu acho que o cargo é de presidente, não é não?” À época, escrevi um texto na Folha de S.Paulo , com este título: “ Data venia , ministra Cármen Lúcia, o cargo é de presidente ou presidenta”. Imediatamente, o meu querido amigo José Paulo Caval- canti, escritor, jurista, ex-ministro da Justiça, mandou- me esta saborosa mensagem, que transcrevo ipsis litte- ris , ou seja, ao pé da letra: “Tem calma, Pasquale. Cár- men Lúcia é gente (genta?) boa”. Terminei assimaquela coluna: “Tenhoprofundo respeito pelaministra Cármen Lúcia, não só pela liturgia do cargo, mas também e sobretudo pela altivez comque o professa. Justamente por isso, ouso dizer que teria sido melhor ela ter dito simplesmente ‘Prefiro presidente’”. Não fora ela Cármen Lúcia, ou seja, não tivera ela a postura que tem, talvez eu tivesse recebido alguns desaforos, típicos, por exemplo, de determinado ministro... Esse episódio talvez sugira a ideia de que ninguémdeve meter-se em seara alheia, ou seja, assim como a minis- tra não deve dar “aulas” de português, leigos não devem questionar a linguagem empregada no meio jurídico... Será? O fato de muitos dos operadores do direito ques- tionarem o bolor que ainda há na linguagem desses pró- prios profissionais é sinal de que cabem ventos frescos nesse ambiente. E cabemais decoro também. Énomínimo hilariante ver as diatribes no Pretório Excelso entre rapa- pés e salamaleques pronominais (“Vossa Excelência isto”, “Vossa Excelência aquilo”). E tenho dito. ■ pasquale cipro neto está diariamente na rádio CBN, com A Nossa Língua de Todo Dia . Foi o idealizador do programa da TV Cultura Nossa Língua Portuguesa e colunista do jornal Folha de S.Paulo. Cártula chéquica Nada mais é do que uma folha de um talão de cheques. Causídico Mais conhecido por advogado. Cônjuge supérstite É o viúvo ou a viúva. Data venia Expressão latina que significa “dada a permissão”. Com ela, inicia-se de forma educada, uma argumentação contrária à opinião de outra pessoa. Digesto obreiro Refere-se ao compêndio mais conhecido por “Consolidação das Leis do Trabalho”. Egrégio Pretório Supremo ou Excelso Sodalício Supremo Tribunal Federal. Embargo de declaração Significa que a sentença não está clara, tem que ser explicada. Recurso geralmente utilizado pela defesa para ganhar tempo. Embargos infringentes Recurso existente em processos criminais usado quando o réu não concorda com uma decisão no processo. Isso permite que a decisão seja analisada novamente. Ergástulo público Trata-se da cadeia ou prisão. Na Roma antiga era o cárcere onde ficavam os escravos. Petição exordial É a peça inicial de um processo. Petição incoativa Outra forma de se referir à peça inicial do processo. Trânsito em julgado Quando não há mais nada em trânsito, ou seja, o réu já foi inocentado – ou condenado – em todas as instâncias. É hora de simplificar O jargão empregado nos tribunais não é fácil. Para ajudar na inglória tarefa de decifrar algumas dessas charadas terminológicas, segue um pequeno glossário.
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