Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018
26 JULHO | DEZEMBRO 2018 A toga e a capa por gisele vitória Em meio à superexposição dos ministros, até mesmo o simbolismo das vestes talares pode estar se transformando elas flanam como um véu negro. As togas esvoaçantes dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) passam nas telas eletrônicas em seubalanço a caminho do Olimpo judiciário. A indumentária, confeccionada em cetim ou microfibra importada,parece estar emmutação. Às vezes, não se porta comoummanto de altivez que cai dos ombros sobre o peito e as costas dos magistrados, e mais parece uma capa – como aquelado Batman. É assim, pelo menos, que os ministros irrompem no espetáculo da TV. O manto é longo, digno de um super- -herói, e termina no tornozelo. Nos ombros, as alcinhas, uma de cada lado, para prender a toga sobre os ternos dos ministros e terninhos e vestidos das ministras,ficam aparentes – como nas roupas que deixam os ombros de fora. Resta pouca coisa das togas clássicas, tradicionais, que estavam mais para adornos da prelazia do que para adereço de heróis de gibi. O caso merece análise, à luz da moda e da história do vestuário.Pode ser que os signos da corteestejam sendoreinventados. Um pouco de história Desde a Roma antiga, apeçaé umsinal da imparcialidade da Justiça, e integra também os ritos da nobreza e do sacer- dócio. Do Senado romano à Suprema Corte inglesa, repre- senta umdos principais símbolos damagistratura e reforça o ar de circunspecção daqueles que a envergam. O vocá- bulo “toga” – ou veste talar – significa “roupa comprida até o calcanhar”. Na Antiguidade, era branca ou vermelha, quando usada por senadores eministros romanos. Depois, o vermelho ficou restrito a umprivilégio da realeza. Os juí- zes passaram a preferir a cor preta, definida pela ausên- cia de luz – o preto absorve os raios de iluminação, mas nãoreflete nenhum. A ideia cria uma analogia coma figura do juiz, quedeve ser imparcial, avessa ao ato de exibir-se. “A indumentária dos juízes não escapa a uma abor- dagem antropológica”, diz o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e da Uni- versidade Presbiteriana Mackenzie Orlando Villas Bôas Filho. “Autores como o antropólogo Norbert Rouland ressaltam que as cores que a caracterizam detêm uma simbologia. O preto expressa a imperatividade da regra. Daí a associação feita pelo autor entre a toga e a batina.” Villas Bôas explica que o vermelho denota vinculação com o poder. Presente nos recintos de cerimônia, espe- cialmente nas mais altascortese até no couro que reves- Os 11 ministros exibem a toga pela sede do STF; Cármen Lúcia, que passou o cargo de presidente em setembro para o colega Dias Toffoli CARLOS HUMBERTO/SCO-STF FELLIPE SAMPAIO/SCO-STF NELSON JR/SCO-STF REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 27 tia as encadernações dos códigos, o vermelho simboliza a ameaça da pena. “Daí a declaração de Rouland de que ‘o direito se impõe à nossa retina’.” O vermelho na toga vigorou no século 15. A partir do século 16, a toga negra tornou-se regra, tanto no direito quanto na medicina. Em 1694, juízes de toda a Europa foram ao velório da rainha Mary II, da Inglaterra. Vestiam trajes negros em luto, o que seseguiu por anos na Inglaterra.Em seguida, isso foi copiado por outros países – e não apenas entre magistrados. No século 17, membros do clero católico e protestante usavamo traje como representação da autori- dade divina e da dignidade. Tambémos puritanos do século 17, influentes na Escandinávia, Inglaterra eHolanda,pre- feriam o preto, que, para eles, era a cor mais neutra e menos pretensiosa, ou seja, a mais apropriada para pes- soas em cargos de confiança de líderes religiosos ou polí- ticos. A veste negra diferenciava o pequeno Olimpo e a planície dosmortais. O uso obrigatório da toga no Brasil está no artigo 16 do regimento interno do STF. Há toda uma liturgiaem torno dessa norma. Para começar,a lei deixa muito clara a dife- rença entre a toga e a beca. A primeira veste os minis- tros do Supremo e outros juízes de cortes inferiores. A segunda, a beca, é usada por advogados e membros do Ministério Público quando precisamcomparecer aos tri- bunais. A beca também é usada por professores univer- sitários, especialmente nas escolasde Direito e deMedi- cina.Togas, portanto, são só para juízes. “A toga, pela sua tradição e seu prestígio, é mais do que um distintivo”, escreveu o ex-ministro Mario Gui- marães, no livro O Juize a Função Jurisdicional (Editora Forense). “É um símbolo. Alerta, no juiz, a lembrança de seu sacerdócio. Incute no povo, pela solenidade, respeito maior aos atos judiciários.” Significado hoje Isso tudo, enfim, é história. E hoje? Será que o público vê a toga como um signo de imparcialidade ou como um signo de força? Quando o telespectador da TV Justiça vê os ministros chegando ao STF com suas “capas” negras ondulando no ar, o que entende? Vê ali uma marca de imparcialidade? De sabedoria? De elevação do espírito? Ou será que enxerga na vestimenta uma semelhança com o figurino de um super-herói de filmes de ação? A crise de imagem do Poder Judiciário, que se agrava quando dois ministros trocam ofensas durante um julga- mento, tem alguma relação com a instabilidade do signo da toga no imaginário contemporâneo? A Justiça brasi- leira merece, de todos nós, confiança e respeito, e isso, absolutamente, não está emquestão. O que está emques- tão é a simbologia da toga nesses tempos de espetáculo judicial. Na ágorada televisão e da imagem eletrônica, o que representa aquela capa que tremula feito bandeira ao sabor do desfile dos ministros? Seria fantasiar demais especular sobre o lado som- brio da toga?O espectador seria hoje capaz de imaginar na simbologia das togas a antiguidade romana? Ou será que, para ele, as semelhanças imagéticas mais próximas remetema figuras menos clássicas? Pensemos, por exem- plo, na estampa de um Darth Vader, o vilão da série Star Wars . Dependendo do ângulo da foto, as imagens são idên- ticas. Na saga de George Lucas, Darth Vader foi antes o herói-jediAnakin Skywalker, tragado pelo lado negro da força e transformado emagentemaligno. Certamente, a simbologia da toga não tem a menor vocação maligna de Darth Vader, que é o oposto de qualquer ideal que se tenha de justiça. Mas a semelhança fotográfica, ou cine- matográfica, desconcerta. O historiador Joseph Campbell é um dos principais inspiradores da saga Star Wars . Conhecedor profundo da obra do psicanalista Karl Gustav Jung, ele concebeu a figura do herói com base em arquétipos legados a nós pelas mitologias de várias culturas. Com essa consciên- cia, Campbell não deixou de fazer observações sobre a toga. Em seu livro OPoder doMito (Palas Athena), escrito com o jornalista Bill Moyers, ele anota: “Quando um juiz adentra o recinto de um tribunal e todos se levantam, não estão se levantando para o indivíduo, mas para a toga que eleveste e para o papel que ele vai desempenhar”. A ministra Rosa Weber; de costas, o ex-ministro Joaquim Barbosa; Ellen Gracie e Gilmar Mendes; o decano Celso de Mello e Gilmar Mendes FELLIPE SAMPAIO/SCO-STF NELSON JR /SCO-STF CARLOS MOURA/SCO-STF JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL
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