Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018

28 JULHO | DEZEMBRO 2018 Senado da Roma antiga; juízes da corte de Elizabeth I no século 16; perucas típicas do Judiciário inglês sobrevivem no século 21 No mesmo livro, Campbell reflete em outro momento sobre a figuramítica do anti-herói DarthVader: “Asmásca- ras de monstros, usadas pelos atores de Guerra nas Estre- las (Star Wars) , representam a verdadeira força mons- truosa no mundo moderno. Quando a máscara de Darth Vader é retirada, você vê um rosto informe, de alguém que não se desenvolveu como indivíduo humano. É um burocrata, que vive não nos próprios termos, mas nos termos de um sistema imposto”. Crise de reputação Na nossa era, sabemos que as imagens são signos que identificam as figuras públicas. Diante disso, então, reto- memos a pergunta: como será que a plateia brasileira lê esse adereço quando vê os ministros cruzaremos espaços do tribunal pela tela da televisão? Estaria ali algum ele- mento de Batman ou de Darth Vader? “Não é para tanto”, discorda o filósofo e professor de ética da USP Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação. Mas ele também se preocupa. SegundoJanine, o Poder Judiciário permanece forte no Brasil, mas pode estar começando a viver uma crise de reputação, no rastro do “suicídio” de imagem dos poderes Executivo e Legis- lativo: “Ficou manchada a imagem do Judiciário, a par- tir do auxílio-moradia e mais recentemente do voto da maioria dos ministros pelo aumento dos próprios salá- rios.Infelizmente a imagemdos juízes hoje não é a de pes- soas que são respeitadas nas suas decisões soberanas. Um mesmo juiz é aplaudido ou vaiado, dependendo da deci- são, se agrada ou desagrada. Os juízes estão sendo julga- dos.E por gente sempoder. Na verdade, estamos vivendo uma grande destruição das instituições”. E, nesse cenário, em que medida a toga ainda corres- ponde à liturgia do cargo? Ela é um sinal de dignidade? Impõe o respeito de que falou Joseph Campbell? “O uso da toga passa pelo significado do que é vestir uma roupa que ninguém usa”, diz Renato Janine Ribeiro. “Como é recebida uma veste tão fora de uso, apresentada todos os dias na TV Justiça e no noticiário? Em que medida se torna solene ou se torna ridículo para o telespectador? Não é óbvio que seja solene nemé óbvio que seja ridícula.” Na Inglaterra, berço das togas ainda em uso, também há controvérsias. Os magistrados da Inglaterra e do País de Gales usa- ramas perucas brancas feitas comcrina de cavalo desde o século18. As antigas togas e perucas foramaposentadas em outubro de 2008 (só os juízes criminais britânicos ainda continuaramcoma tradição). LordeNicholas Phillips, pre- sidente da Suprema Corte do Reino Unido, foi o respon- sável pela mudança. Ele considerou que as perucas eram antiquadas para os tempos atuais. Uma nova toga, tam- bém chamada “robe”, foi desenhada pela estilista britâ- nica Betty Jackson. Permanece preta, mas é mais estilosa e moderna. A hierarquia entre os juízes é indicada com duas faixas verticais de diferentes cores, abaixodopescoço. O novo “robe” causou horror aos juristas mais con- servadores, que compararam seu traje a uma “mistura de fantasia do Star Trek com o uniforme de Stormtroo- per fascista”. Gente da moda também não aprovou. A editora de moda do jornal The Guardian , Hadley Free- man, afirmou na época que a nova toga britânica dei- xou os juízes com cara de pregadores malvados e perso- nagens do espaço: “Olhem para este pobre homem, em vez de parecer majestoso, o mais alto magistrado, lorde Phillips, ficou parecendo com o vendedor de ingressos para a experiência Star TrekemLasVegas”. Antes, os juízes britânicos usavam o tempo todo a toga tradicional, complementada pela peruca de crina cavalo, que podia ser de “primeiramão” ouusada. Custava cerca de mil libras esterlinas. Os juízes recebiamuma verba para a compra do adorno, uma espécie de “auxílio-peruca”, ainda não adotado no Brasil. O mercado de compra e venda do adereço de juízes eramuitomovimentado. Houve casos de perucas que foram roubadas e revendidas. Hoje, porém, elas não têm mais lugar na cúpula do judiciário inglês. Sob medida No Brasil, a indumentária dá trabalho, mas vem sendo modernizada. Cada ministro tem pelo menos duas togas feitas sob medida, estas para o trabalho rotineiro, e ALBUM/FOTOARENA SUZANNE PLUNKETT/REUTERS/FOTOARENA CESARE MACCARI REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 29 A capa é essencial no figurino de Batman; Robin Hood levou o direito às florestas; o manto ajuda a caracterizar o vilão Darth Vader duas outras para cerimônias mais pomposas. O cetim de seda tem sido substituído pela microfibra. O alfaiate AurélioDias, que faz togas para o SupremoTribunal Fede- ral desde a década de 1990, e faz tambémalgumas extras, particulares, que os ministros pagam do próprio bolso, complementa: “Amicrofibra é ummaterial que temtextura e caimentomelhor, especialmente quando o tecido é impor- tado”. Normalmente as compras das togas sobmedida são feitas por meio de licitação no STF. As togas são lavadas uma vez por semestre e a responsabilidade de mandá-las para a lavanderia é do próprio STF. A justiça é cega mas sente cheiro. Para evitar suor e desconforto, os tecidos pesados foramsendo substituídos por outrosmais leves e confortáveis. Por isso, amicrofibra acaba sendomais procurada, seja combrilho ou mais fosca. A altura a partir do tornozelo é regulada ao gosto do ministro. A lei, nesse ponto, é flexível. “Às vezes, quandoos ministros vão sentar, a capa enrosca na cadeira. Então, já atendi pedidos para fazê-las um pouco mais curtas”, explica Dias. Também vai da preferência de cada ministro amarraras fitas e cordões nas costas ou colocar um fecho, que fica escondido, para a toga não cair. Segundoa ex-chefe do cerimonial do SupremoWaleska Câmara Hitzschky Barreto, que passou por diversos tri- bunais numa carreira de 33 anos, as pequenas diferen- ças que identificam as togas dos ministros, dos desem- bargadores e dos juízes estão detalhadas nos regimen- tos internos dos vários tribunais. A vestimenta normal- mente tem o mesmo comprimento. A diferença está nos cordões, no corte e no jabô – como é chamada a rendi- nha branca. As provas de toga são feitas nos respectivos gabinetes.WaleskaBarreto dá mais detalhes: “Os minis- tros não têm tempo e é preciso otimizar a prova. Lembro que mandamos fazer a toga do ministro Edson Fachinàs pressas, e ele ainda estava noSul”. Waleska estuda o assunto há anos paramontar um livro sobre o cerimonial no Judiciário brasileiro. Na sua pes- quisa, ela descobriu que os ministros do STF chegaram a usar perucas brancas e capelo (chapéu preto),quando a Suprema Cortetinha sedeno Rio de Janeiro.“Ao longo de 33 anos, vi as togas serem modificadas”, relata a pesqui- sadora. “Antes, era mais rígido. Com o tempo, elas foram se diferenciando para o conforto dos ministros. Sempre procuramos achar tecidos mais leves que não compro- metessem o caimento.” As togas tambémsão diferentes conforme varia o gênero da autoridade judiciária. As dos ministros não são iguais às das ministras. Para sua posse como presidente do STF, a ministra Cármen Lúcia, que deixou o posto em setem- bro, não precisou fazer uma toga nova. “Ela usou amesma da cerimônia de posse como ministra, ela é muito prá- tica”, menciona Waleska. Robin Hood ou Darth Vader Tantos detalhes e cuidados ajudam a entender a comple- xidade das significações de uma toga. Asimbologia dessa peça do vestuário se confunde coma da própria Justiça. O filósofo francêsMichel Serres costumava contar a história de Robin Hood, ou Robin de Bois, para explicar a força do direito. Emuma entrevista a Ricardo Teixeira, Serres afir- mou: “Você sabe o que essa lenda quer dizer? Em outros tempos, nas florestas não havia direito. Todo espaço era umespaço jurídico, exceto as florestas. Eramconsideradas zonas de não direito. E Robin, uma palavra francesa que quer dizer ‘celui qui porte la robe’(aquele que usa o ‘robe’), e ‘la robe’ era a toga do juiz. E, portanto, Robin Hood quer dizer o homem de direito num espaço de não direito. Ora, os espaços de não direito são espaços onde muitas trans- formações têm lugar– o lugar onde, aomenos em imagem, metaforicamente, as transformações sociais se fazem”. Entre Robin Hood e Darth Vader, a transição da toga como significante pode estar acontecendo. A toga, que antespodia significar ausência de luz, hoje pode expres- sar outras coisas completamente diferentes. Enfim, o que será que o telespectador da TV Justiça imagina quando vê uma toga que se parece com uma capa? ■ gisele vitória foi diretora da IstoÉ Gente , colunista da IstoÉ , coordenou coberturas do São Paulo Fashion Week e cobriu desfiles em Milão e Paris. É consultora da GBR comunicação, de Guilherme Barros, e editora-chefe da Robb Report Brasil . LOUIS RHEAD WARNER BROS. PICTURES/EVERETT COLLECTION/FOTOARENA FOTOARENA

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