Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018

42 JULHO | DEZEMBRO 2018 As inverdades hoje circulam na Cosmópolis – espaço urbano e global de interconexão dos mundos físico e virtual –, e são muitos os desafios para garantir a eficácia da lei nesse ambiente sivo de robôs para influenciar as redes sociaismostraramumnovo, complexo e perigoso mundo para a democracia e a liberdade de expressão. Esse “epi- sódio complexo” (que pode ser divi- dido em muitos outros capítulos de igual complexidade) ainda está em andamento. Ele expôs a vulnerabili- dade da democracia americana não somente a novos riscos oriundos de outros países, mas principalmente aos desafios sociais e tecnológicos nacio- nais com os quais a sociedade ameri- cana não estava bem preparada para lidar. Há uma clara percepção de que as fake news não apenas tiveram um papel relevante no andamento das eleições americanas, como contribu- írampara aumentar a divisão política empolos extremos nos locais onde se disseminaram. As eleições presidenciais francesas também se tornaram alvo de desta- que na mídia internacional logo após a eleição de Trump. Rapidamente se percebeu que as fake news eram um fenômeno cujo impacto se manifes- tava com força para além das frontei- ras americanas. O candidato à Presi- dência Emmanuel Macron foi o prin- cipal alvo da “indústria de fake news”, que disseminou boatos falsos acerca de sua orientação sexual e acusações de fraude fiscal. 4 O novo significado dessa ameaça à democracia foi clara- mente visto como um desafio para a maioria das democracias liberais con- temporâneas, entreasquaiscertamente se incluemas latino-americanas, usu- almente mais instáveis e vulneráveis. De uma hora para outra, especial- mente nos Estados Unidos, cientistas sociais e especialistas sobre mídias sociais foram forçados a calibrar seus instrumentos de análise em torno da produção de um entendimento mais abrangente e profundo sobre tais acon- tecimentos que envolviam o funcio- namento da democracia de massas, das mídias sociais, e de todo processo de produção e reprodução de crenças sociais e políticas. Algumas das dimen- sões centrais desse novo contexto são corretamente sintetizadas por Timo- thyGartonAsh. Emseu livro Free Spe- ech – Ten Principles for a Connected World , o autor mostra como diver- sos fenômenos interconectados estão interligados às fake news tal como elas hoje se manifestam. Cosmópolis De acordo com Ash, o novo contexto de comunicação das fake news ocorre numa Cosmópolis. Para ele, 4 Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/2017_Macron_e-mail_leaks. Acesso em: 23 jun. 2018. Cosmópolis é o contexto transfor- mado para qualquer discussão sobre livre expressão nos nossos tempos. Cosmópolis existe na interconexão dos mundos físicos e virtuais e é, portanto, tomando emprestado uma frase de James Joyce em Finnegans Wake , “urbano e global”. [...] um ho- mem publica algo em um país e um homemmorre em outro. Alguém faz uma ameaça de violência nesse outro país e uma performance ou publica- ção é cancelada naquele. De umama- neira perturbadora também somos todos vizinhos. (ASH, 2016, p. 27-28, em tradução livre) É fácil reconhecer como esse fato afeta as fake news comumente pro- duzidas em territórios estrangeiros (Rússia, Macedônia etc.), como mos- tra a eleição de Trump. Essadimensãodas fakenewsnaCos- mópolis traz muitos desafios jurisdi- cionais sobre como regular e garantir a eficácia da lei sobre esta nova prática. Existe hoje emdia um intenso debate sobre a atitude que poderes privados como Google, Facebook e WhatsApp devem adotar face às demandas dos Estados. Umcaso paradigmático entre o Google e a China estava em questão quando essa empresa decidiu sair do país por não concordar com as leis e requisitosdogovernochinês. Tal episó- diodeuorigemadois questionamentos interconectados, apontados por Ash: Emprimeiro lugar, como uma pla- taforma ou meio transnacional deci- de emqual país está? Em2000, quan- do o Yahoo foi instruído pela corte francesa a remover de seu website acessível globalmente alguns objetos nazistas à venda, o vice-presidente do Yahoo exclamou: “Ok, quais leis de- vo seguir? Temos tantos países e tan- tas leis, mas apenas uma internet”. “Apenas uma internet” foi a suposi- REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 43 5 Excelente descrição do tipo de crença no compromisso com a verdade que lentamente se construía durante o século 19 na Europa e nos Estados Unidos. “This insistent and ancient belief that truth is not earned, but inspired, revealed, supplied gratis, comes out very plainly in our economic prejudices as re- aders of newspapers. We expect the newspaper to serve us with truth, however unprofitable the truth may be. For this difficult and often dangerous service, which we recognize as fundamental, and expected to pay until recently the smallest coin turned out by the mint. We have accustomed ourselves now to paying two even three cents on weekdays, and on Sundays, for an illustrated encyclopedia and vaudeville entertainment attached, we have screwed ourselves up to paying a nickel or even a dime. Nobody thinks for a moment that he ought to pay for his newspaper . He expects the fountains of truth to bubble, but he en- ters into no contract, legal or moral, involving any risk, cost or trouble to himself. He will pay a nominal price when it suits him, will stop paying whenever it suits him, will turn to another paper when that suits him.” Apud Eugênio Bucci. “Pós-Fatos, Pós-Imprensa, Pós-Política: A Democracia e a Corrosão da Verdade” (Palestra para o Ciclo Mutações em 2017. Rio de Janeiro, 3/10, e Belo Horizonte, 4/10). ção otimista da época. Na segunda década do século 21, o problema é se ainda existe “apenas uma internet” – ou se estamos rapidamente cons- truindo não meramente uma inter- net com fronteiras, mas uma inter- net fatiada, contendo redes distintas como a Chinanet, Russianet, Brazil- net, e assim por diante. A segunda questão é se “leis” do direito norte- -coreano têm o mesmo sentido uti- lizado ao nos referirmos às leis sue- cas. Não deveriamas companhias fa- zer uma distinção entre Estados on- de as leis são promulgadas por um legislativo democraticamente eleito – apesar de sujeito a um lobismo in- tenso, notavelmente de empresas – e interpretadas por um Judiciário in- dependente, e Estados onde, a exem- plo da China, as palavras “lei” e “re- gulação administrativa” podem ser utilizadas de forma intercambiável? (ASH, 2016, p. 63, em tradução livre) Situações como essa mostram outro elemento de novidade das fake news hoje. O cidadão como autor A segunda grande diferença no con- texto emque as fake news contempo- râneas ocorrem está relacionada às mudanças sociais e comunicacionais produzidas pela tecnologia e, espe- cialmente, pela internet. Quais são as oportunidades mais características da internet? De ma- neira simples: é mais fácil tornar as coisas públicas e mais difícil mantê- -las privadas. O primeiro enunciado tem um potencial liberador muito grande, especialmente para a liber- dade de expressão; o segundo abri- ga um potencial opressivo, inclusive uma ameaça à liberdade de expres- são. Se um Estado ou uma empresa sabem tudo que nós dizemos a qual- quer pessoa, seremos menos livres. (ASH, 2016, p. 29, em tradução livre) A internet, portanto, representa tantooportunidadesde liberaçãocomo de opressão e controle dos indivíduos e da liberdade de expressão. Também é importante notar que a internet transforma todo cidadão em um“potencial produtor de notícias ou de opiniões”. Por um lado, isso oferece uma oportunidade liberadora e demo- crática paramilhões de pessoas tradi- cionalmente excluídas das raras chan- ces disponíveis para apenas poucos de expressar suas opiniões via imprensa, TV ou rádio. Por outro, essa explosão de novos canais de interação social, especialmente pelas mídias sociais, tem criado novas esferas de comuni- cação social imunes a qualquer cul- tura ou ethos forte, similares à ética de imprensa ou à ética jornalística comumenteencontradanamaiorparte dos países democráticos. Os paradig- mas jurídicos, morais e éticos relati- vos à comunicação pública e mídia se desenvolveram e foram compar- tilhados lentamente durante déca- das em que a prática jurídica, a edu- cação jornalística institucionalizada (especialmente pelas faculdades de jornalismo) e debates públicos ocor- reram. Tais práticas fixaram padrões de civilidade, compromisso coma ver- dade e responsabilidade que demuitas maneiras ainda regulam o ethos pro- fissional na mídia nos países demo- cráticos (LIPPMANN, 1997, p. 203). 5 Não há uma “cultura do compromisso com a verdade” similar já em funcio- namento nas mídias sociais. A nova luta pelo poder O novo cenário criado pela internet e pela tecnologia também mudou as dimensões da luta pelo poder e de seus participantesmais importantes. O número de envolvidos emcasos como os das eleições de Trump e deMacron é imenso. Por trás da cena existe uma pletora de organizações internacio- nais, governos nacionais, companhias, engenheiros, meios de comunicação, campanhas de massas físicas ou vir- tuais pelas redes sociais, todos com- petindo em um jogo multidimensio- nal que se realiza em diversos níveis. Esse sistema complexo tambémentre- laça negócios, política, direito, regu- lação e o rápido desenvolvimento de tecnologias de comunicação. Lawrence Lessig identifica quatro diferentes tipos de restrições agindo em qualquer ponto do sistema de informação global: (i) o direito; (ii) o mercado; (iii) as normas; e (iv) a arquitetura da internet. De acordo comele, “o código é a lei”, significando que “o software e o hardware (i.e., o “código” do espaço cibernético), que fazemdo ciberespaço o que ele é, tam- bém regulam como ele é” (LESSIG, 2000). Ash usa umametáfora útil para descrever a arena onde ocorre a luta

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