Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018
44 JULHO | DEZEMBRO 2018 pelo poder no ciberespaço. 6 Para ele, governos são os cachorros, as com- panhias são os gatos e nós somos os ratos (ASH, p. 35). OsEstadosUnidos continuamsendo omaior cachorro, já que ainda ocupam a posição de país mais importante do mundo, alémde seremo domicílio das plataformas globais de comunicação eletrônicamais utilizadas. A sua influ- ência na Cosmópolis é grande, pois a doutrina americana da liberdade de expressãoénormalmenteseguidapelos “grandes gatos” (Facebook, Google, YouTube etc.). Já que os Estados Uni- dos adotama tradição da liberdade de expressãomais liberal domundo, seu impacto nas jurisdições estrangeiras é imenso. Como umefeito colateral, a reação das sociedades menos liberais ao seu forte impacto não surpreende. As respostas a ele, contudo, são ambi- valentes, às vezes os padrões liberais americanos são aceitos e incorpora- dos, outras vezes são rejeitados. Google, Facebook, Twitter eWhats- App podemnão ser países, mas ainda constituem empresas gigantes de informação. Elasnãopossuemaautori- dade formal de criar leis comoEstados soberanos. Além disso, seus líderes não são responsáveis pelos seus usu- ários como governos democráticos o são em relação aos seus eleitores. Não obstante, a sua capacidade de interferir com a liberdade de infor- mação e expressão é maior que a da maioria dos Estados nacionais. Esses gatos reinam sob um regime exces- sivamente frouxo de responsabilida- des ou controle público e social. Eles exercem imenso poder sobre esses “espaços públicos de propriedade privada”, tendo, portanto, grande res- ponsabilidade pelas causas e efeitos das fake news. Comomencionado anteriormente, na Cosmópolis todo cidadão (ou netizen – cidadãos da rede – como alguns especialistas de mídia prefe- rem chamá-los agora) pode ser um autor, jornalista ou um editor. Teori- camente a umcustomuito baixo todos podemdivulgar palavras, imagens ou sons que chegarão a bilhões de outras pessoas ao redor domundo. Algumas histórias extremamente raras pare- cem confirmar o mito de que a audi- ênciamundial está disponível a todos. No entanto, como enfatizado corre- 6 “Cyberspace is not a separate, unitary state, with its own laws, courts and police, but neither is it simply a patchwork quilt of national jurisdictions. It is something in between, with many mongrel forms of life – a confused reality inadequately papered over by such labels as ‘multistakeholder ’ or ‘the internet community’.” ASH, p. 36. 7 Ver: “Combating Fake News: An Agenda for Research and Action”. Maio 2017. Conferência ocorrida entre 17-18 fev. 2017. Organizada por Matthew Baum (Harvard), David Lazer (Northeastern), e Nicco Mele (Harvard). Disponível em: http://www.sipotra.it/wp-content/ uploads/2017/06/Combating-Fake-News.pdf. Acesso em: 23 jun. 2018. tamente por diversos estudiosos, “a facilidade técnica da autodivulgação produz uma cacofonia à la Torre de Babel, em que, na realidade, amplia- -se ainda mais a dificuldade de a voz de um indivíduo ser ouvida” (ASH, 2016, p. 65, em tradução livre). Esse cenário é importante para entender por que o uso de fake news pode ser uma estratégia de baixo custo não só para manipular diretamente a opinião pública e os consumidores, mas também para servir como uma ferramenta eficiente para aumentar o alcance de alguma informação. O efeito da câmara de eco Outra dimensão muito importante da troca de informação na Cosmópo- lis e os potenciais riscos e oportuni- dades para uma sociedade de valores plurais está relacionada ao “efeito da câmara de eco”. É óbvio que a internet e as mídias sociais abrirame facilitaramde formas inimagináveis o acesso a uma grande quantidade de informação, livros, ima- gens, vídeos que não era disponível anos atrás. No entanto, ainda não está clara qual a reação das pessoas daCos- mópolis diante de tamanha abundân- cia de pluralidade de informações. 7 Quanto esforço seria empregado na busca do “pluralismo externo” das visões políticas na internet?As pessoas processam sua dose diária de infor- mações a partir de um viés limitado e preconceituoso que apenas reforça opiniões já estabelecidas? Ash for- mula a questão da seguinte maneira: Sabemos a partir de experiências amargas que você pode ter diversi- dade midiática em escassez, mas se- rá que podemos tê-la em excesso? Google, Facebook, Twitter e WhatsApp podem não ser países, mas são gigantes da informação com mais capacidade de interferir na liberdade de expressão do que a maioria dos estados nacionais REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 45 8 Ver também: SPOHR, Dominic. “Fake News and Ideological Polarization: Filter Bubbles and Selective Exposure On Social Media”. Business Information Review , Vol 34, n. 3, p. 150-160. Primeira publicação em 23 ago. 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0266382117722446. Acesso em: 23 jun. 2018. SUNSTEIN, Cass R. 2009: On Rumors: How Falsehoods Spread, Why We Believe Them, What Can Be Done . Londres: Allen Lane. 2009. 9 Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2018/jan/12/why-facebooks-news-feed-changing-how-will-affect-you e https://www.searchenginejournal . com/google-algorithm-history/. Acesso em: 23 jun. 2018. 10 Disponível em: http://idgnow.com.br/internet/2018/04/02/facebook-e-agencia-lupa-firmam- -parceria-para-checar-fake-news-nas-eleicoes/. Acesso em: 23 jun. 2018. 11 Disponível em: http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/61-dos-portu- gueses-alega-encontrar-fake-news-pelo-menos-uma-vez-por-semana-289710. Acesso em: 23 jun. 2018. 12 Disponível em: http://www.lemonde.fr/idees/ article/2018/01/20/les-fake-news-sont-elles-de-vrais-mensonges_5244408_3232.html. Acesso em: 23 jun. 2018. A hiperdiversidade representa uma ameaça à esfera pública bem-infor- mada da mesma forma que o mono- pólio político e comercial o fazem? Aqui notamos novamente o perigo de as pessoas se voltarem para su- as pequenas câmaras de eco , seu “Eu diário”, onde elas encontram apenas opiniões que reforçam seus próprios preconceitos, baseando-se em fatos ou factoides. (ASH, 2016, p. 208, em tradução livre) Aqui tambémse verifica a novidade desse fenômeno social que traz mais um significado político em poten- cial para a ação de disseminar falsas informações. Cass Sunstein sugeriu que a inter- net pode, na prática, contribuir para o que ele chama de polarização de gru- pos (SUNSTEIN, 2007, p. 114-117). 8 Longe de serem confrontadas com uma diversidade de visões contrá- rias, como se esperaria num ideal de esfera pública liberal, as pessoas pro- curam comunidades minoritárias de pensamento semelhante. Esse com- portamento é comumentre extremis- tas políticos e identificável em vários nichos ( clusters ) de simpatizantes radicais de Donald Trump. É importante reconhecer que essas evidências estão longe de ser conclu- sivas quando utilizadas como dados para recomendar possíveis medidas de combate às fake news. Por um lado, ainda não se temcerteza da existência de algum tipo de processo de apren- dizado social capaz de criar incenti- vos para que as pessoas não confiem cegamente em tudo que leemou veem nas mídias sociais e adotem uma ati- tude de maior cautela e prudência na checagem de fatos, de modo a evi- tar a disseminação das fake news. Por outro lado, há indícios de que há algumas preferências pelo plu- ralismo que poderiam ser satisfeitas com algumas mudanças no algoritmo utilizado pelo Facebook, Google etc. 9 O recente escândalo da Cambridge Analytica durante a eleição presi- dencial de Trump já tem provocado algumas mudanças, como visto nas respostas oficiais dadas por alguns dos “gatos”, especialmente o Face- book. Algumas delas envolvem par- cerias com ONGs especializadas em checagem de fatos, comprometidas a combater de forma rápida os ata- ques provocados pelas fake news. 10 O contexto em que as fake news se inserem hoje é radicalmente dife- rente de outros contextos históricos nos quais notícias falsas eram inten- cionalmente propagadas. Por essa razão, é muito artificial e até engana- dor afirmar que as fake news são um fenômeno históricomuito antigo. Elas de fato representaminformações frau- dulentas com a intenção de enganar. Entretanto, essa informação se situa no complexo cenário da Cosmópolis. É provavelmente esse omotivo oculto pelo qual portugueses 11 e franceses, 12 famosos por seu nacionalismo lin- guístico, têm hesitado em traduzir a expressão fake news em suas línguas nativas, e têm frequentemente prefe- rido a expressão inglesa ao se referir a essa prática “na Cosmópolis”. Hámuitos desafios relacionados ao combate às fake news. Em primeiro lugar, alguns deles estão relacionados à inadequada compreensão da novidade ASH, Garton Timothy. Free Speech – Ten Principles for a Connected World . London: Atlantic Books, 2016. BUCCI, Eugênio. “Pós-Fatos, Pós-Imprensa, Pós-Política: A Democracia e a Corrosão da Verdade” (Palestra para o Ciclo Mutações em 2017. Rio de Janeiro, 3/10, e Belo Horizonte, 4/10). GONZALEZ, Anna. SCHULZ, David. “Helping Truth with Its Boots: Accreditation as an Antidote to Fake News”. The Yale Law Journal Forum. Disponível em: https://www. yalelawjournal.org/forum/helping-truth-with- its-boots. Acesso em: 23 jun. 18. LESSIG, Lawrence. “Code Is Law: On Liberty in Cyberspace”. Disponível em: https://www. harvardmagazine.com/2000/01/code-is-law- html. Acesso em: 23 jun. 2018. LIPPMANN, Walter. Public Opinion . New York: Free Press Paperbacks (Simon and Schuster), 1997. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. “Freedom of Expression: What Lessons Should We Learn from US Experience?” São Paulo: Rev. Direito GV [online], 2017, vol.13, n.1, pp. 274-302. ISSN 2317-6172. Disponível em: http://dx.doi . org/10.1590/2317-6172201711. Acesso em: 23 jun. 2018. Artigo original apresentado na Conferência do SELA de 2017 em Quito. SUNSTEIN, Cass R. 2007: Republic.com 2.0. Princeton: Princeton University Press, 2007. BIBLIOGRAFIA ronaldo porto macedo júnior é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas (FGV-Direito). representada por elas. Fake news não designamapenas uma versão contem- porânea da prática de espalhar men- tiras. Elas são um fenômeno que pre- cisa ser entendido no contexto daCos- mópolis. Não compreender essa novi- dade nos condena a propor remédios ineficazes ou danosos à liberdade de expressão e à democracia. ■
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy NDQ1MTcx