Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018
54 JULHO | DEZEMBRO 2018 nós precisamos falar sobre bots. Como os tribunais vão lidar comques- tões como liberdade de expressãopara inteligências artificiais? Esse debate está próximo, e ele pode forçar os tri- bunais superiores a fazer algo que eles evitam: definir quem é jornalista e quem não é. Por quase meio século, o sistema jurídicodos EstadosUnidos viveuuma vida dupla. Por um lado, a Suprema Corte alegou que jornalistas têm os mesmos direitos dos demais cidadãos [esse marco da jurisprudência ameri- cana foi estabelecido em 1972, quando o Supremo julgou o caso Branzburg vs Hayes, em que Paul Branzburg, repór- ter do Courier-Journal , de Louisville, noKentucky, foi obrigado a revelar suas fontes emum julgamento sobre o tráfico de drogas] . Por outro lado, os tribunais inferiores normalmente ignoram ou desconsideram diversas leis que dão proteção especial aos repórteres. Isso inclui garantias constitucionais de liberdade de expressão próprias do trabalho jornalístico (aplicáveis em alguns tribunais federais) e isenção de custas em procedimentos envol- vendo leis de acesso à informação. Várias dessas leis e garantias foram concebidas antes que a internet esti- vesse disponível para o público, e a jurisprudência não é uniforme ao definir quem está protegido por elas no ambiente virtual. Esses dispositi- vos, pensados para os jornalistas, já foraminstrumentos úteis para pessoas como blogueiros, usuários de fóruns Os tribunais terão de decidir se inteligências artificiais são titulares de direitos autorais e se podem usufruir das garantias de um jornalista de carne e osso por jared schroeder Os robôs querem liberdade GUTO LACAZ REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 55 e comentaristas de redes sociais, que enfrentaram as mesmas dificuldades legais que os profissionais da imprensa tradicional pormuitos anos: processos envolvendo privacidade e difamação, ações para que revelassem suas fon- tes, entre outros exemplos. Ao longo dos anos, tribunais esta- duais e federais tentaramdefinir quem é equemnãoé jornalista, usandovárias abordagens. Leis dos estados, que pro- tegemo sigilo das fontes de repórteres, levaram a situações em que os tribu- nais tiveramque fazer essa distinção. Recentemente, pessoas que não atuam na imprensa têm invocado a proteção dessas leis, cujo alvo da garantia pode variar bastante. Os tribunais inferio- res fizeram o trabalho difícil nesse campo, a Suprema Corte ficou de fora. Robôs repórteres Então onde entram os bots? Tecnolo- gias de rede já desafiam os jornalistas a distinguir seu trabalho dos muitos outros tipos de informação que inun- dam os meios virtuais. Agora, a inteli- gência artificial pode deixar a situação mais confusa.Os tribunaisembrevevão precisar decidir se inteligências artifi- ciais são titulares de direitos autorais – e se umbot pode gozar das garantias de um jornalista. O cidadão comum que publica seu trabalho em algum meio é uma boa comparação. As decisões judiciais cos- tumamsermais favoráveisquandoesse trabalho é encarado como um serviço público – algo considerado informa- tivo ou ligado a uma questão de inte- resse público. Mas os tribunais tam- bém analisaram os métodos dessas pessoas. Seu trabalho é original? Pre- ciso? Ele inclui fontes? Alguns tribu- nais chegaram a avaliar característi- cas pessoais. O autor fez curso de jor- nalismo? Ele está empregado em um veículo jornalístico? Se os tribunais se concentraremno autor, é difícil que as inteligências arti- ficiais recebam as mesmas proteções dos jornalistas. Se as cortes enfocarem o trabalho realizado, porém, a inteli- gência artificial temmais chances de sucesso, especialmente se o material produzido puder ser considerado de interesse público. Talvez seja chocante pensar em garantir liberdade de expressão para um bot, mas uma decisão favorável de um tribunal para uma inteligên- cia artificial pode beneficiar as orga- nizações jornalísticas – algumas delas (como AP e Reuters) publicammaté- rias feitas por meio de IAhá anos. Um exemplo disso é a cobertura diária do mercado de ações. Boa parte desse material pode ser considerada de inte- resse público (os alertas de notícias, por exemplo) e, dessa forma, rece- ber as garantias legais do jornalismo – mais uma vez, se os tribunais con- siderarem o que foi publicado, emvez de como foi publicado. Essas questões se tornammais com- plexas no contexto das fake news e das manchetes caça-cliques. Nas últimas eleições, EstadosUnidos, ReinoUnido eFrança viramuma inundaçãodenotí- cias falsas, ou propositalmente confu- sas, nas redes sociais – uma enxurrada provocada por bots. Esse uso dificil- mente pode ser considerado um ser- viço de utilidade pública. Precisamos definir o que é o fator humano no jornalismo – e o que é fun- damental para isso. Umprogramador de bots poderia requerer garantias de jornalista para proteger o código de seu programa de uma ordem judicial para que revele as fontes usadas em uma matéria? Se umbot faz uma soli- citação combase emuma lei de acesso à informação, ela deveria estar isenta de custas caso a ideia seja reunir esses dados para publicá-los no Twitter ou em um blog? Essas questões vão aparecer nos tribunais. E é importante que nós as enfrentemos, conforme entramos na quarta onda das comunicações em rede: relações cada vez mais comple- xas entre seres humanos e inteligên- cias artificiais. ■ jared schroeder é professor assistente na Southern Methodist University, onde se especializou nos desdobramentos da Primeira Emenda à Constituição Americana (que garante a liberdade de expressão). Publicou em 2018 o livro The Press Clause and Digital Technology’s Fourth Wave: Media Law and the Symbiotic Web (“A Cláusula da Imprensa e a Quarta Onda da Tecnologia Digital: Direito dos Meios de Comunicação e a Web Colaborativa”). Texto originalmente publicado em 24 de maio de 2018 em www.cjr.org
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