Revista de Jornalismo ESPM JUL-DEZ_2018

62 JULHO | DEZEMBRO 2018 CARLOS HEITOR CONY morreu no início de janeiro de 2018. No dia 31 de dezembro de 2017, foi publicada sua última crônica na página 2 da Folha de S.Paulo , on- de ocupava alguns dias da se- mana a mesma coluna, “Rio”, que até 1997 tinha sido de An- tonio Callado. O texto que acabou sendo sua despedida é lírico, nostálgico, de uma pureza infantil: uma carta a uma criança que vai em breve se dar conta de que Papai Noel não existe e aquele Natal, ocor- rido na semana anterior, terá si- do o último em que “consegui- mos manter o mistério”. Como sempre, ao longo de quase 13 anos, Cony provava a habilidade incrível de fazer ca- ber em um microtexto, de 1.700 caracteres, muitas informações narradas com grande qualidade literária, de “dimensões antoló- gicas”, como classifica o escritor e jornalista Bernardo Ajzenberg, responsável pela organização e introdução do livro Quase Anto- logia , que o selo Três Estrelas, da Folha , acaba de lançar. As páginas de opinião da Fo- lha (2 e 3 de seu primeiro ca- derno) são quase inteiramente dedicadas a textos de jornalis- mo duro, críticas e análises so- bre política, economia, no mais das vezes, sempre de temas de interesse nacional. Mas desde o início dos anos 1990, a partir do momento em que Otto Lara Re- sende ocupou o espaço, a colu- na dedicada ao “Rio” tem sido produzida por uma sucessão de LIVRO Coletânea de crônicas de Carlos Heitor Cony O ex-ministro e o enigma da educação Quatro cavaleiros das novas mídias Quase Antologia: As Melhores Crônicas de Carlos Heitor Cony na Folha de S.Paulo Carlos Heitor Cony / Bernardo Ajzenberg (org.) Três Estrelas, 2018 350 páginas autores de grande esmero lite- rário, sempre muito superior à média do jornal. Não seria in- justo dizer que ali se publicam alguns dos melhores textos da Folha . Mesmo Ruy Castro, outro dos melhores escritores nacio- nais, agora principal ocupante do espaço, atribui à maestria de Cony uma de suas referências na crônica jornalística. Cony foi um raro caso de jor- nalista que recebeu reconheci- mento pela obra literária ain- da jovem e pôde usufruir des- ses louros ao longo de quase 50 anos. Estreou no jornalismo aos 26, em 1952, depois de sete anos em um seminário para pa- dres, um ano estudando filosofia e dois em um curso militar. Nun- ca mais largou a imprensa, mas também produziu uma grande obra literária a partir de 1958. Entre 2005 e o último dia de 2017, escreveu sobre todos os as- suntos e sobre nenhum: a falta de assunto foi um dos temas de que ele mais habilidosamente tratou. “A melhor solução quan- do um cronista não tem assun- to é escrever sobre a morte da bezerra. No entanto, se fosse se- guir a regra, eu matava todas as bezerras do mundo”. Esse texto, em que confessa a falta de ins- piração, termina com uma expli- cação ainda mais transparente: “Que as bezerras me perdoem, à custa delas pretendo comprar um carro novo”. Assim, o escritor provava mais uma vez sua fidelidade à profissão. “Escrever é um ofí- cio, não uma arte, e o sujeito que abandona seu ofício por lhe fal- tar inspiração não se leva a sério. E pode acabar economicamente quebrado”, ensina William Zins- ser, no clássico Como Escrever Bem (Três Estrelas, 2017). Ainda que mantivesse o tra- balho diário commaestria, havia certa melancolia em alguns de seus textos, talvez maior ao final. Ela se manifesta especialmente em “Se eu morrer amanhã” (de 5/3/2017): “Se eu morrer ama- nhã, não levarei saudade de Do- nald Trump. Tambémnão levarei saudade da operação Lava Jato nemdomensalão”. Depois de lis- tar uma série de temas, ele con- cluía: “Enfim, não levarei sauda- de de mim mesmo, de meus fra- cassos nem minhas dívidas. Fi- nalmente, não terei saudades dos milagres dos pastores evan- gélicos nem de um mundo que cada vez fica mais imundo”. ■ LIVROS OS QUATRO é o best-seller de Scott Galloway sobre as em- presas que dominam as no- vas mídias: Apple, Amazon, Google e Facebook (pouco tempo atrás eram cinco, mas a Microsoft desidratou). O au- tor conta a história das em- presas e desvenda suas es- tratégias. Ele é professor de marketing na escola de negó- cios da New York University e um palestrante popular: seu TED temmais de meio milhão de espectadores. ■ O PROFESSOR Renato Janine Ribeiro é um acadêmico res- peitado e popular nas mídias sociais. À frente do Ministé- rio da Educação no início do segundo mandato de Dilma Rousseff, atribuía prestígio a um gabinete opaco, que já prenunciava a crise que le- vou ao impeachment da pre- sidente. Em A Pátria Educa- dora em Colapso , ele reflete sobre a experiência frustran- te no Planalto e como o siste- ma educacional está relacio- nado à manutenção da po- breza no país. ■ Os Quatro HSM Editora, 2017 320 páginas A Pátria Educadora em Colapso Três Estrelas, 2018 352 páginas DIVULGAÇÃO REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 63 A INTUIÇÃO LEVOU um jovem es- tudante brasileiro na Europa a encontrar um saboroso conjun- to de textos esquecidos da litera- tura brasileira: as peças radiofô- nicas escritas por Antonio Calla- do entre 1943 e 1947, quando ele trabalhou no Serviço Brasileiro da rádio BBC, em Londres. São 19 peças de “radiodramas” edita- dos por Daniel Mandur Thomaz, professor de Literatura Brasilei- ra em Oxford, onde faz doutora- do sobre o trabalho de Callado. Antonio Callado morreu em 1997, dois dias antes de fazer 80 anos. Até o fim da vida, escre- veu uma coluna na página 2 da Folha de S.Paulo . Em 2017, ano de seu centenário, o trabalho de Thomaz foi anunciado, e lança- do este ano. Em Londres, o autor de Qua- rup recebia da BBC por texto es- crito. Quando morava na Holan- da, em 2013/14, Mandur Thomaz procurou a empresa tentando lo- calizar os trabalhos que Callado produziu para ela, durante a Se- gunda Guerra Mundial e logo de- pois do conflito. O caminho se abriu no depar- tamento financeiro, que ainda guarda uma lista de pagamen- tos feitos na época, cada um com a anotação da natureza do texto, nome e data em que foi ao ar. Com essa lista, Thomaz pediu que fosse aberta a pasta do es- critor brasileiro no arquivo mor- to. Foi a parte mais demorada: documentos antigos são manti- dos em caixas lacradas e este- rilizadas, para evitar a ação de microrganismos. A autorização levou três meses. Nela, Mandur Thomaz en- controu as 19 peças radiofôni- cas, que compõem o livro Rotei- ros de Radioteatro Durante e De- pois da Segunda Grande Guerra (1943-1947) . Achou também 50 crônicas, que pretende editar, em um novo volume. É provável que Callado tenha morrido achando que esses tex- tos tinham se perdido. Eles eram escritos para o rádio e eram gra- vados em discos regraváveis, mantidos por um curto perío- do de tempo, para um raro caso de aquele programa ser reprisa- do. De tempos em tempos, os LIVRO Peças radiofônicas de Callado para a BBC Roteiros de Radioteatro Durante e Depois da Segunda Grande Guerra (1943-1947) Antonio Callado / Daniel Mandur Thomaz (org.) Autêntica, 2013 288 páginas discos usados eram reciclados para gravar novos programas. Pouca coisa era preservada na- quele período, como as notícias de fatos históricos. Reforça essa convicção a constatação de que alguns dos textos foram reutilizados por Callado depois que voltou ao Brasil. Uma cópia mimeografa- da de “Lord Byron e a Grécia”, que foi ao ar na BBC em setem- bro de 1943, está arquivada en- tre as obras de Callado na Fun- dação Casa de Rui Barbosa co- mo roteiro da peça apresentada na Rádio Globo em setembro de 1947, logo que o escritor voltou ao Brasil, como conta a apresen- tação do livro. De fato, parece que os fono- gramas das montagens das pe- ças não existem mais, mas to- dos os textos mencionados nos recibos consultados estavamnas pastas, em páginas datilografa- das, datadas e com anotações (como os nomes dos censores, no tempo da Segunda Guerra). As peças são sempre textos de ficção com forte referência a fatos da realidade daquele mo- mento. As obras produzidas du- rante a Segunda Guerra sãomui- tas vezes peças de propaganda, ora críticas ao nazismo, ora elo- gios ao espírito de resistência dos franceses, por exemplo. O primeiro texto da antologia, cha- mado “A Eterna Descoberta do Brasil” (que foi levado ao ar em março de 1943), é uma parábo- la sobre a passagem do escritor austríaco Stefan Zweig no Brasil. Sobre a análise literária dos trabalhos, o crítico disse, em en- trevista à Folha : “As peças não têm apenas valor histórico, mas também literário. Na verdade, eu defino o material como pos- suindo três esferas de interes- se: o estético, para os leitores e o grande público em geral; o crí- tico, para os estudiosos da obra de Antonio Callado; e o históri- co, porque as peças foram es- critas durante a Segunda Guer- ra Mundial por um intelectual brasileiro vivendo o conflito de perto, na Inglaterra”. Ao ser questionado sobre o impacto de sua descoberta pa- ra o público e os estudos da obra de Callado, Mandur Tho- maz destaca o fato de que esses textos antecipam em uma déca- da a estreia do autor na ficção: até agora, seus críticos conside- ram que isso tinha ocorrido nos anos 1950, com a peça O Fígado de Prometeu (1951) e o romance Assunção de Saviano (1954). ■ Callado escreveu para o serviço de rádio da BBC nos anos ¼½¾¿ leão serva é jornalista, professor do curso de graduação em Jornalismo da ESPM e escritor, autor de Jornalismo e Desinformação (Senac, 2001) e coautor de Como Viver em São Paulo sem Carro – 2013 . Dirige a agência de conteúdo Santa Clara Ideias. ACERVO ANA CALLADO DIVULGAÇÃO

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