Revista da ESPM MAR-ABR_2007
52 R E V I S T A D A E S P M – MARÇO / ABRIL DE 2007 O consumidor de baixa renda bastidores das estatísticas: não reduzir as classes populares `a pouca renda disponível para o consumo, mas, sim, compreender os valores e sentimentos que guiam essa subcultura. Um cami- nho para a quebra das pré-noções. VALORES A ATITUDES NA BAIXA RENDA Ao longodos últimos cincoanos, tenho lideradoeacompanhadovários estudos com abordagem etnográfica entre o públicodebaixa renda.Asdificuldades, falhas e limites de aplicação nomerca- dodaetnografia, comoelaéconcebida pela Antropologia, ainda são menores diante da oportunidade de aprendi- zados, insights e principalmente, de contrapor os mitos e pré-noções com o contexto do consumidor. A seguir apresento alguns dos valores e atitudes observados emmais de 300 ca- sasvisitadasemestudoscomabordagem etnográfica realizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. O tempo de imersão nessas casas variou conforme a necessidadedecadaprojeto,masnunca foi menos de três dias. ACESSO FINANCEIRO Para uma subcultura que tem uma renda média mensal de R$ 927,00 (IBGE, 2003), preço é importante. Mas nem sempre restritivo. Podem adquirir produtos com valor acima da renda disponível, desde que existam meios para isso. Parcela- mento, carnês, compra em crediá- rio são entendidos primeiramente como uma forma de acesso, e só então, como endividamento. Numa pesquisa recente, realizada pela InSearch, instituto de pesquisa de comportamentoe tendências, comuma amostra de 1.000 pessoas das classes CDE, verificou-se que cada domicílio dessa subcultura tem em média 3 a 4 carnês. O término de um carnê é sempre comemorado. Não porque é o final de uma dívida, mas porque é a oportunidade de uma nova aquisição, substituindo-o por um novo carnê. Só recentemente as empresas têm facilitado o acesso ao crédito para as classes populares. Esse consumi- dor faz contas e sabe que os juros são altos. No final, paga um valor muito maior do que o preço à vista do produto. Mas é a única forma de acesso que possui. Tendo de ad- ministrar uma vida financeiramente instável, a alternativa de poupar para pagar à vista é inviável. Isso porque a renda média familiar desse grupo tem oscilações significativas ao longo do ano: quando todos da casa têm uma fonte de renda, ainda que originária de trabalho informal, a condição financeira é melhor. Mas essa não é uma condição per- manente. Ao contrário, é comum ter sempre alguém desempregado na casa, característica do trabalho temporário e informal. É importante oferecer um acesso com dignidade e respeito para as classes populares. Reclamam que as filas para aprovação de crédito são sempre longas e em ambientes quentes, sem qualquer conforto. Além do desconforto, enquanto estão na fila, travam uma guerra angustiante com a dúvida se terão o crédito aprovado ou não. Ter o crédito reprovado gera um sen- timento de humilhação: tentou comprar, mas não foi autorizado. O acesso foi negado. COMPARTILHAMENTO O compartilhamento começa pelo espaço físico. Moram em casas, em geral, com no máximo 4 cômodos: sala, 2 quartos, cozinha e banheiro. São em média 6 pessoas na casa. Também é comum o compartilha- mento de terreno: várias casas num mesmo terreno e, algumas vezes, comumúnico banheiro para todas as famílias que ali moram. São raros os momentos de privacidade ou indivi- dualidade. Os produtos também são compartilhados e somente algumas categorias têm unidades individuais para cada morador: escova dental, absorvente íntimo, alguns cosméticos quando considerados “premium”. O compartilhamento é mais que um hábito, é uma atitude que orienta as relações com os vizinhos, parentes e amigos. As famílias emprestam produtos e serviços entre si, não por um valor de solidariedade, mas pelo valor da “reciprocidade”. Comparti- lhar é hábito que atua como identi- ficador do grupo e também emblem- ático da condição socioeconômica: quem não compartilha é porque é rico ou porque é arrogante, “metido” e não tem identidade nem relação como grupo. Esse compartilhamento está além de pedir uma xícara de açúcar na casa vizinha: •usode telefonefixo: umvizinhovisita ooutroe, duranteavisita, “lembra”que precisa usar o telefone; •eletroeletrônicos como DVD, CD player, aparelho de som; •computador e internet: há casas que se transformam quase que numa lan house;
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