Revista da ESPM

Brasil: um Hércules- Quasímodo entre o moderno e o arcaico Emuma cena dopremiadodocumentá- rio Notíciasdeumaguerraparticular (João MoreiraSalles eKátiaLund, 1999), oen- tãochefedepolíciacivil doEstadodoRio de Janeiro, o delegado Hélio Luz, mira paraacâmeraqueoentrevistaediz: “Eu afirmo, não precisa ninguém dizer, eu afirmo: a polícia é corrupta. [...] Agora a pergunta que eu faço para a sociedade é a seguinte: é possível uma polícia que não seja corrupta? [...] A sociedade aguenta isso? Uma polícia que não seja corrupta não perdoa. Vai ser como nos demais países. Você para o carro em local proibido, você leva multa; sonega imposto, vai preso. Não aceita propina. A sociedade está preparada para isso?”. É interessante notar que, subliminar a esta fala, vinda de um representante do Estado, está algo bastante interessante e significativo para pensar a tríade da Modernidade tal como se apresenta no Brasil e que estaria, na visão deste ensaio, nabase conceitual de todas asdificuldades levantadasquandosepensaa inserçãodoBrasil no quadro de nações economicamente emergentes. Tem sido lugar excessivamente comum fazer referências ao Brasil como o país da contradição. Principalmente a contradição mais evidente, pela qual somosmundialmente conhecidos: aquela de caráter socioeconômico(esuasderivações). É lugar igualmente comum a constatação de que, sendo umpaís rico, somos umpaís demiséria e pobreza dada a gigantesca concentração da riqueza aqui produzida; portador de instituições democráticas relativamente bem consolidadas (principalmente nos últimos 25anos), aindanavegamosnomar da fama de um dos países mais corruptos do mun- do; criadores de um respeitável e bem elaborado sistema jurídico, somos o país que só aplica os “rigores da lei aos inimigos do rei” 5 ; donos de um invejável patrimôniocientífico, nossasuniversida- des produzem conhecimento de ponta, nas mais variadas áreas, que tem revolucionado o mundo, ao mesmo tempo em que nossos estudantes do ensino médio e fundamental têm exibido um desempenho, comparativamente a outros povos, que nos deixam envergonhados; somos o país de grandes e renomados autores literários e um dos que menos leem. E, mais recentemente, nos ve- mos alçados aopódiodeumapotência emergente economicamente,masnosquestionamos se temos competência para manter essa posição por forças próprias e de forma sustentável. O que é menos lugar-comum, no entanto, é a interpretação de que na raiz dessas contradições está uma outra, marcada no nosso universo simbólico-cultural que, raramente, como nativos que somos de uma cultura viva, nos damos conta. Uma contradição que, como integrantes de uma lógicaculturalmais abrangente (adeuma“cultura ocidental”) nós deveríamos ter dadomais atenção ao longo de nossa formação histórico-cultural. A contradição que pode ser considerada como uma espécie de contradição-mãe, nutriz e sustentáculo de todas as demais (inclusive aquelas de caráter socioeconômico), entre o Arcaico e o Moderno. Vivemosessaambiguidade (queRobertoDaMatta chama de “hibridismo”) 6 . Desejando, no nosso imaginário, ser uma sociedade plenamente Mo- derna, ainda não nos decidimos se queremos de fato pagar o alto preço (em todos os sentidos), que esta Modernidade nos cobra, abandonando de veznossos traçosmais arcaicos (ouantimodernos, se quisermos). Essa questão precisa ser resolvida a partir da experiência dessa ambiguidade (que chega a ser antitética), se quisermos pensar a in- serção do Brasil de forma consistente e destacada nonovocenáriogeopolítico internacional quevem se formando nos últimos dez anos. Ao falardesse tipodecontradição, gostodepensar numclássicoepioneirona interpretaçãodoBrasil: OsSertões , deEuclidesdaCunha. Emumdos seus trechos mais citados, no capítulo em que fala do “Homem” do sertão (que se tornou uma espécie de tipo ideal weberiano do “brasileiro”), o autor afirma: “Osertanejoé, antesde tudo, umforte. [...] A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revelaocontrário. [...]Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos.” (Cunha,2000:270).EmboraEuclidesdaCunhanão Notícias de uma guerra particular , filmado em 1999, é um documentá- rio brasileiro que retrata o cotidiano dos traficantes e moradores da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro. Traça um para- lelo entre as falas de mo- radores, dos traficantes e da polícia, colocando todosnomesmopatamar de envolvimento emuma guerra que não pode ser caracterizada como uma “guerra civil”, mas uma “guerra particular”.

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