Revista de Jornalismo ESPM - 28

50 JULHO | DEZEMBRO 2021 a um personagem totalmente novo. Qualquer pessoa com um computador e uma placa de vídeo relativamente sofisticados pode aprender a fazer umdeepfake. Isso inclui o governo russo: antes dasmanifestações no começo do ano em Moscou a favor do líder da oposição Alexei Navalny, o Kremlin parece ter inundado a geotag #redsquare (Praça Vermelha) com fotos de pessoas geradas por GAN para diluir o conteúdopró-Navalny. Para criarum deepfake convincente, no entanto, é preciso dinheiro e habilidade, pois sem isso o queixo se confunde com o pescoço e os olhos não piscam. “Ainda não há uma tecnologia para criar um deepfake convincente ao apertar de umbotão, especialmente se você quiser ter áudio”, disseMatt Turek, que dirige a área que libera verbasparadetecçãodedeepfakesda DARPA (Turek jurou que a DARPA não está ajudando o governo americano a criar deepfakes). Nada disso impediu jornalistas de abraçar o drama, como é nosso hábito, sobretudo quando o drama envolveuma tecnologiaquedistorce apercepçãodomundopelas pessoas (algo sobre o qual a imprensa costumava ter mais controle). Anos atrás, a cobertura neurótica sobre a aparição de ferramentas sinistras de realidade aumentada (GoogleGlass, por exemplo) fez sombra ao impacto da tecnologia na vida real. O mesmo pode ser dito até aqui dos deepfakes. Nocomeçode2018, oBuzzFeedchamouachegadadosdeepfakesde“um potencial ‘infocalipse’”edeum“falso ProjetoManhattan”. Na esteira veio umsem-fimdereportagensalarmantes, tanto na grande imprensa como emmeios voltados à tecnologia. Em março de 2019, o The Verge publicouumartigo sobo título “Deepfake Propaganda Is Not a Real Problem”, mas seguiupublicando alertas regulares sobre a propaganda deepfake. Voltando ao presente: que se saiba, nenhumdeepfake sinistro foi usado comoarmapolíticanaeleiçãode2020. Nesse ínterim, tudooque foi publicado para conscientizar o público criou, na prática, a sensação de que nossos olhos estão constantemente nos traindo. “Dáa impressãoqueestamos cercados de deepfakes”, disse Sam Gregory, diretor de programas naONGamericanaWitness, voltada a abordar “ameaças e oportunidades” trazidas por novas tecnologias e que ocupa, ela própria, uma posição crucial na ala ativista do complexo industrial dodeepfake. “A impressão é que a escala de falsificação visual a nossa volta é muito maior do que é” (amenos, é claro, queos deepfakes já sejam tão convincentes que, na verdade, estamos mesmo rodeados por eles o tempo todo. Nesse caso, vivemos na caverna de Platão e o problema já não tem solução). Quem sai ganhando nesse ecossistemaondeoriscodesermosenganados é constante não é o pessoal da tecnologiaquecriaosdeepfakes,mas aquelesqueexploramomedododeepfake para criar uma desconfiança plausível em fatos da vida real. Já há até umnovo termo acadêmicopara esse princípio: “o dividendo do mentiroso”. No dia 7 de janeiro, Trump fez um discurso na Casa Branca no qual criticava amultidãoque invadiu o Capitólio no dia anterior e sinalizava a seus apoiadores que ia parar de contestar os resultados da eleição. Na manhã seguinte, Twitter, Parler e 4Chan ferveram com a especulação de que o discurso fora um deepfake divulgado contra a vontade de Trump. “Esse é um #deepfake horrível”, escreveu o usuário @OldBear no Parler. “Os movimentos da cabeça, a cadência, ele nunca saiu do roteiro.” Em 1985, a crítica e acadêmica Donna Haraway publicou um influente ensaio chamado “Manifestociborgue”.Nele,Haraway argumentou que o advento da hibridização de máquina-organismo criou uma estrutura para a mulher escapar de normas de gênero prescritas. Como não tem origens biológiQualquer pessoa comumcomputador e uma placa de vídeo pode fazer deepfake. Mas para criar ummaterial convincente é preciso dinheiro e habilidade.Semisso,oqueixoseconfundecomopescoçoeosolhosnãopiscam QUEM | QUANDO | COMO | ONDE | POR QUÊ E O QUE ESTÁ POR VIR. . .

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