Revista de Jornalismo ESPM - 28

6 JULHO | DEZEMBRO 2021 “A reprise de umprograma sempre recebe menos atenção. A exceção fica para aquilo que é emocionalmente estimulante, que desejamos ver e rever, repetidamente” Hoje, noBrasil,maisde50mil pessoas por ano são assassinadas. São 137 pessoas por dia. Não seria possível contar cada uma dessas histórias no noticiário. Os homicídios tipificados como feminicídios sãomenos comuns, não chegam a três por dia e merecem um destaque maior. Os de figuras públicas, como políticos, são raros. Recebem toda a atenção dos noticiários. A repetida exposição às cenas de violêncianosnoticiáriosgeradoisefeitos paradoxais na sociedade. Por um lado, ficamos “anestesiados” edeixamosdenos chocar comas cenasmais comuns de violência. De outro, vivemos com a impressão de que esse é o mundo que nos cerca (e de fato é, em algumas comunidades, mas não em todo o país). Violência é apenas um exemplo, embora omais dramático. Tomemos outro. Asmanifestações nas universidades com alunos desfilando nus, emprotestopor alguma causa. Éalgo raro, acontece uma vez ou outra em algumas poucas universidades do Brasil, protagonizado por pequenos grupos de alunos. Por issomesmo, é notícia. Se acontecesse diariamente nas 2,5mil universidades brasileiras, não seria notícia. Mas a impressão que fica para os consumidores da mídia é que é isso que os alunos vão fazer nas universidades. Um museu expõe uma coleção de arte erótica e a arte é satanizada. Alguns funcionáriospúblicossãoacusados de participar de um esquema de corrupção e todos os funcionários públicos são corruptos. Padres, pastores e curandeiros são flagrados em atos deploráveis e o mundo da espiritualidade perde sua credibilidade. A busca do extraordinário Gradativamente, nossa percepção da realidade se deteriora e omundo parece um lugar muito pior do que realmenteé.Nãoéà toaqueadepressão vem se transformando no mal do século. Antes da pandemia, e mesmo agora em seu ocaso (esperemos), bilhões de habitantes do planeta têm um dia tranquilo. Alunos estudam, artistas criam, líderes religiosos acolhem aflitos, funcionários públicos fazem seu trabalho, pessoas trocam carinhos, tudo isso num volume gigantescamente maior do que as exceções. Mas isso não é notícia, justamente porque é comum, “normal”. A realidade cotidiana é enfadonha e não dá audiência. Precisamos do excepcional e do inusitado para sentir-nos vivos, mesmo que sejam histórias, de realidade ou ficção. Uma boa pergunta é por que não damos mais atenção para o que é excepcional e inusitado de forma “positiva”, como histórias de amor, de ajuda ao próximo ou de honestidade. Elas também estão por aí. Tenho duas hipóteses para isso. A primeira é a de que as mazelas e tragédias, de alguma forma, nos fazem sentir, momentaneamente, que nossa condição pessoal é melhor, por comparação. Somos menos violentos, menos corruptos e estamos sendo “recompensados” sendo menos vítimas dessas circunstâncias. Belas histórias têm o efeito instantâneo contrário. Daí a crescente irritação com as redes sociais, onde todos postam seus melhores momentos. Asegunda é que engajar opúblico comnotícias amenas talvez sejauma arte mais difícil e para poucos, tal qual fazerhumor comelegância, sem palavrões ou humilhações. Guy Debord, se bem me lembro, em seu livro de 1997 (A sociedade do espetáculo), acusava-nos de trocar a vida real pelo imaginário, pela sucessãode imagensdifundidaspelamídia. Mas se existe “culpa”, ela não pode ser atribuída exclusiva e coletivamente à mídia ou aos jornalistas que, em sua maioria, acredito estarem se esforçando para fazer bem o seu trabalho, cientes de suas responsabilidades. O próprio Debord aponta o fenômenocomoconsequênciadomodelo social capitalista.

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