Revista de Jornalismo ESPM - 28

36 JULHO | DEZEMBRO 2021 ninguém importante e com um deadline se aproximando. Encerradonaquele closet de falsificados, imaginando se iria parar na celadeumaprisãonaChina, cheguei à conclusãodequeas glóriasde ignorar a ética em coberturas clandestinas erammuitas – superadas, talvez, só pelas tragédias do impacto cada vez menor do jornalismo rigoroso. E, ano passado, cheguei de novo à mesma conclusão quando vi Sacha Baron Cohen criando notícia sem fazer jornalismo na sequência de Borat. OqueCohen fez foi, também, uma espécie de projeto clandestino, criando uma notícia na vida real ao colocar RudyGiuliani emuma posição comprometedora: emumquarto de hotel, ao lado de umamoça que o entrevistava, amão enfiada na calça. Cenas, aliás, reproduzidas à exaustão pormeios de comunicação idôneos. Achei engraçado que, por mais limites que, nós, jornalistas, imponhamos anósmesmos ao fazernosso trabalho, organizações jornalísticas estão claramente dispostas a dar espaço a armações sensacionalistas, de gênero incerto e duvidoso. Hoje, mais que nunca, o jornalismo está em crise e é difícil não ver com ambivalência normas que herdamos enquanto o mundo a nossa volta muda. Ao que parece, se formos por essa ética não vamos chegar muito longe. Antes de virar jornalista, a ideia que eu tinha de como um repórter deveria se conduzir era influenciada, emgrandemedida, pelo trabalho de TedConover, autor do livro Newjack: GuardingSingSing, umdos indicados aoPulitzer emumadas categorias de não ficção em2001. Para escrever o livro, Conover trabalhou por quase um ano como agente penitenciário, o que lhe deu uma visão inédita do ônus de viver na prisão tanto para encarcerados comopara carcereiros. Conover secandidatouàvagausando onome verdadeiro e seuhistóricode trabalho real; no tempo que passou em Sing Sing, não mentiu. “Você lê a reportagemde outro jeito se [souber que] o repórter estavaenganando umpersonagem”, me disseConover há pouco. “Acho que o tipo de leitor que eu busco se perguntaria, ‘valeu a pena enganar ou mentir a alguém para expor a verdademaior que você estava buscando?’.” O conflito entre pequenas mentiras e grandes verdades no jornalismo de infiltração remonta a um clássico do gênero: Dez dias num hospício, umrelato emprimeira pessoa feito em1887, porNellie Bly, que passou noites emclaro para simular sintomas que a levariama ser admitida emummanicômio feminino na Ilha de Blackwell (hoje Roosevelt), emNova York. Uma vez lá, Bly sentiu na pele o abuso e a negligência a que pacientes eramsubmetidas; em outubro, dividiu com os leitores do NewYorkWorld deJosephPulitzer o que tinha descoberto comsua armação, que além de sensacional prestouumserviçopúblico enorme, pois trouxemudanças hámuito necessárias no tratamento de doençasmentais e incutiu em figuras de poder o medo de uma nova categoria de repórter investigativo. Desde então, ficou estabelecido um certo padrão para jornalistas infiltrados: Blymostrou que, se o conteúdo resultante for importante e o serviço prestado à sociedade considerável, o leitor vai perdoarmétodos questionáveis. Muitos seguiriam a trilha aberta por ela, commaior ou menor grandeza. Em 1965, Hunter S. ThompSacha Baron Cohen criou uma espécie de projeto clandestino, com uma notícia da vida real ao colocar Rudy Giuliani em uma posição comprometedora ILUSTRAÇÕES: TIM MCDONAGH QUEM | QUANDO | COMO | ONDE | POR QUÊ E O QUE ESTÁ POR VIR. . .

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