CVII:
Non veggio ove scampar mi possa omai
...ch’al quintodecimo anno
m’abbaglian...
CVII:
Não vejomais para onde fugir
...que o décimo quinto ano
me dominam...
No décimo sexto aniversário do encontro, a paixão de
Petrarca continuava inabalada, sem esmorecer:
CXVIII:
Rimansi a dietro il sestodecimo anno
de’ miei sospiri, et io trapasso inanzi
verso l’estremo; e parmi che pur dianzi
fosse ‘l principio di cotanto affanno.
CXVIII:
Odécimo sexto ano domeu pranto
ficou para trás; e sigo caminhando
até o fimdaminha vida, imaginando
que não dura omeu afã desde tanto.
Em 13 de abril 1343, Petrarca está com 40 anos, Laura,
não sabemos. Cumprem-se17anos doprimeiroencontro
e a chama ainda permanece acesa:
CXXII :
Dicesette anni ha già rivolto il cielo
poi che ‘mprima arsi, e già mai non mi spensi;
ma quando avèn ch’al mio stato ripensi,
sento nel mezzo de le fiamme un gielo.
CXXII:
Dezessete anos já se passaramno céu...
você pode arder , e nuncame extingue;
mas quando penso nomeu estado
emmeio às chamas sinto umgelo.
E ele continua cantando o belo rosto de Laura 18, 19, 20
anos depois daquela primeira visão:
CCXII:
Beato in sogno e di languir contento
...Così vènti anni, grave e lungo affanno,
pur lagrime e sospiri e dolor merco...
CCXII:
Abençoado se consome feliz numsonho
...Assim, vinte anos, difícil e longa angústia,
de lágrimas e dolorosos suspiros...
Até que no ano 21, o encantamento finalmente se desfaz.
Lauramorre.Nomesmo6deabrildeumaSexta-feiraSanta,
aquelaquehaviadespertadoo impulsopara imenso traba-
lhodacriação racional epoéticadePetrarcadeixadeexis-
tirmaterialmente.
O encanto se vai, mas não a magia que impulsiona o
trabalho criativo do poeta. Laura já não era a mesma que
haviasidonasua juventude. Petrarcanoscontasobreoseu
envelhecimento. Mesmo assim, ele a amava. Laura ainda
é a alma, a inspiração que dá ânimo ao seu trabalho. Não
se tratadeummeroacometimento, deuma fascinação, de
umapaixão,masdeumaadoraçãoprofundaeduradoura.
Diferentemente da paixão, passiva e sofredora, a ado-
ração é ativa e consoladora.
Ad orare
representa o ato de
orar, cultivar, propagar, declarar. O apaixonado cala-se,
o adorador propaga. Omóvel da criação de Petrarca não
foi a posse, mas o desprendimento. Nos últimos sonetos
antes da morte de Laura, Petrarca fala do momento em
que ela seria bem velha e ele velho o bastante para que
lhes fossepermitidosentar-se juntos empúblicoeconver-
sar comodois bons amigos. Em1342, nopoema
Secretum
Meum
, publicado no livro
Petrarch’s Secret: Or, the Soul’s
ConflictWith Passion: ThreeDialogues BetweenHimself and
S. Augustine
(Hyperion Pr, 1978), o autor sustenta a tese
deque seuamor por Laura épuroeo corponada tema ver
comele, porque o amor pode ser puramente espiritual:
“Ela era bela e eu a amei. Ela não o é mais, e eu a amo
ainda. Eu a amo, mesmo que o seu corpo haja fanado
pela doença e pela maternidade frequente.”
Com a vida e a obra de Petrarca aprendemos que a
techne
poiētikē
, o trabalho criativo, é produto do inte-
lecto, mas não vem dele. Vem de outra parte, de algo
que perdura quando já não somos os mesmos que fôra-
mos na juventude. Apreendemos que o ânimo criativo
persiste para além do que o fez viver. Que a adoração
se propaga no espaço, mas também no tempo. Tanto
que a morte de Laura dá início a outra série de sonetos,
os de número 264 a 366, que cantam sua lembrança.
No último poema do
Il Canzonieri
nós ainda a vemos
bela, ensolarada, coroada de estrelas:
CCCLXVI:
Vergine bella, che di sol vestita
coronata di stelle...
CCCLXVI:
Virgeme bela de sol vestida,
Coroada de estrelas...
Nessa história do nascimento do humanismo há um
arcano insondável: o do trabalho criativo e do seu
produto. Por que não somos todos criativos como foi
Petrarca? Por que não podemos nos capacitar para pro-
duzir para a eternidade?
Filosofia
Revista da ESPM
|março/abril de 2014
168