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A primeira inclinação é a de explicar o trabalho cria-

tivopeloacaso. Tomamos apsiquedooutro, o sentimento

de Petrarca, por nossa própria psicologia. Não nos damos

conta de que a psicologia de um grande pensador, de um

grandeartista, deumcriadorgenial édiferentedanossa.A

reaçãoimediataéadepensarmosqueissonãopoderianos

acontecer. Entãonegamos a existência da possibilidade.

Outra inclinação é a de instrumentalização do arti-

fício. Pensar, como um amigo de Petrarca, Jacques

Colonna, que escreve a ele dizendo que Laura é uma

invenção sua, que é uma denominação da ansiedade e

do sofrimento do poeta. Mas não há artifício que emule

a criação. Petrarca protestou veementemente porque,

se Laura não existisse, toda a sua obra poética não faria

sentido, não passaria de umdevaneio inconsequente.

Umaterceirainterpretaçãoouposição,compartilhadapor

muitoseruditos, édequeLaurade fatoexistiu,masque foi

magnificadaporPetrarca.Essaposiçãotambémnãopassa.

Não parece crível que um homem como Petrarca tivesse

distorcido a realidade por razões puramente literárias.

Laura, o móbil, a centelha da criação, de fato existiu

na forma emque foi cantada. Prova disso é que na folha

de guarda do seu manuscrito de Virgílio, conservado

na Biblioteca Ambrosiana de Milão, encontra-se uma

nota escrita da mão de Petrarca, em que se lê:

“Laura, ilustre por sua virtude, e longamente celebrada

por meus versos, apareceu diante dos meus olhos pela

primeira vez no início da minha juventude, no ano do

Senhor 1327, no sexto dia do mês de abril, na Igreja

de Saint-Claire d’Avingon, na hora das matinas, e na

mesma cidade, no mesmo mês de abril, no mesmo sexto

dia, na mesma hora das matinas, mas do ano 1348, ela

foi roubada da luz do dia, quando eu me encontrava

em Verona, ignorante do meu destino. A má notícia

me alcançou em Parma, em uma carta do meu amigo

Luigi, namanhã de 19 demaio domesmo ano. Seu corpo,

tão casto e tão belo, foi deposto no convento das irmãs

menores na mesma tarde de sua morte”.

Que umpoeta tivesse amado umser imaginário é possí-

vel. Mas que umhumanista, o fundador do humanismo,

tenha anotado nas margens do livro mais precioso da

sua biblioteca, um livro que lhe vinha com frequência

aos olhos uma nota tão íntima, não pode ser umengodo.

Laura não é uma ilusão, mas ummistério. Omistério

está em como o trabalho de criação, resultante de um

amor semhistória, sem incidentes, recebe um impulso

que dura 21 anos. E mais, porque prossegue depois da

morte de Laura, semalterações. É tão vivo na velhice de

Petrarca quanto fora na sua juventude.

Emque pese o avanço da psicologia contemporânea,

o mistério persiste. Tudo o que sabemos é que o fruto

do trabalho criativo, a

poiētikē

techne

, à diferença do

resultado do trabalho repetitivo, não desaparece. A

criação esteve na mente de Petrarca, onde a Laura real

existiu, esteve no seu canto, onde Laura foi refletida e

está na imaginação daqueles que o leem, para quem

Laura revive para sempre.

Hermano Roberto Thiry-Cherques

Pós-doutor em Médiation Culturelle, Université de Paris. Doutor em

ciência da engenharia, Coppe-UFRJ. Mestre em filosofia, IFCS-UFRJ.

Professor titular da FGV. Blog: hermanoprojetos.wordpress.com

The triumphof death

, ilustração de 1505 retrata

amorte de Laura, dama que o poetaPetrarca

imortalizou emseus sonetos

Il Canzoniere

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março/abrilde2014|

RevistadaESPM

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