entrevista | Mario Sergio Cortella
Revista da ESPM
| janeiro/fevereirode 2014
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ocorrências. Ainda assim, não vejo
que estamos nos degradando, muito
pelo contrário.
Arnaldo
— Estamos, então, construin-
do valores positivos para a sociedade
brasileira?
Cortella
—
Tivemos três fatores im-
portantes para isso: imprensa livre,
plataformas digitais e o maior nível
de informação e de escolarização.
Porque o número de patifes de uma
nação é menor que o de não patifes
em larga escala. O número de pes-
soas que degradam a convivência
não chega a 10% daqueles que fazem
exatamente o contrário. São as
pessoas que trabalham, que con-
tribuem com a sociedade, que são
gentis com o outro. A imprensa livre
gera uma capacidade de divulgação
e de persistência, que aumenta o vo-
lume de denúncias. As plataformas
digitais aumentaram a fiscalização
e detecção dos ilícitos. A formação
escolar da população, que aumen-
tou nas últimas décadas, contribui
contra a alienação.
Arnaldo
— Mas ainda temos uma
Justiça que não condena, uma polícia
que é violenta, mas que não prende
os grandes criminosos, um magistério
que dá aulas, mas não ensina, e um
sistema de saúde que, quando atende,
cura pouco. Por que é tão difícil conser-
tar esses problemas?
Cortella
—
Nós somos um país que
tem 513 anos, mas que não tem 30
anos de democracia, demecanismos
que conduzam uma partilha mais
eficaz daquilo que é coletivamente
produzido. Nos primeiros 389 anos,
ou éramos uma colônia ou um im-
pério. Nos primeiros cem anos da
República, a participação popular
era muito restrita. A primeira elei-
ção geral no Brasil é de 1989. Então,
nosso aparelho de Estado ainda é
muito imperial ou colonial.
Arnaldo
— De que forma isso acon-
tece?
Cortella
—
O Estado opera mais no
campo do favor que do direito. Aqui,
nos definimos como contribuintes,
o que é estranho, já que imposto é
algo obrigatório. O norte-americano
se define como
tax payer
, há uma
diferença de postura. Essa percep-
ção do aparelho de Estado a nosso
serviço é muito recente. Além disso,
há 50 anos não éramos uma das dez
nações economicamente mais po-
derosas do planeta. Se não éramos,
é porque não tínhamos também as
condições mínimas de educação,
saúde etc. Muitos de nossos índices
não são satisfatórios, mas a ver-
dade é que, até pouco tempo, não
tínhamos essa visão de partilha. No
momento em que se começa a colo-
car direitos como o Sistema Único
de Saúde (SUS), quando se impõe
a ideia da educação para todos e a
Constituição de 1988 cria novos
patamares de direitos, entramos no
campo da judicialização.
Arnaldo
— O Estado, então, começa a
ter mais consciência de seus deveres?
Apolícia passa boa parte do tempo, por conta da
legislação e pelo
modus operandi
, cuidando do
patrimônio emvez das pessoas. Há umusomuito forte
da estrutura de repressão emdefesa patrimonial
Emoutubro de 2013, a polícia doRio de Janeiro trabalhouparamanter a segurança
do Consulado dos EstadosUnidos durante asmanifestações populares
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