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janeiro/fevereirode2014|

RevistadaESPM

35

Arnaldo

— Mas teve pouco efeito nas

práticas políticas, não é fato?

Cortella

Nisso, os Black Blocks

deram uma contribuição imensa à

inércia, com um argumento abso-

lutamente frágil ao se colocar como

anarquistas. O anarquismo é um

pouco mais sério do que a lógica da

depredação. Quem leu Errico Ma-

latesta, Pierre-Joseph Proudhon e

Mikhail Bakunin sabe que anarquis-

mo não é ausência de ordem, mas de

opressão. Se existe uma coisa muito

organizada, é o anarquismo. E temos

prova disso a partir dos movimentos

que surgiram no Brasil. No meu Es-

tado de origem, o Paraná, tivemos a

experiência de vida comunitária da

Colônia Sicília (1890-1893). Em São

Paulo, há cem anos o movimento

anarquista chegou a construir es-

colas na Zona Leste. Voltando aos

protestos, num primeiro instante,

a categoria política se encontrou

em estado de tensão, mas depois

relaxou. Afinal, ela tem muito mais

medo da mídia do que de qualquer

movimento popular.

Arnaldo

— Boa parte da esquerda bra-

sileira assumiu o discurso da

realpoli-

tik

, tolerante à corrupção e aos interes-

ses de grandes setores econômicos, os

mesmos que combatia no regime mili-

tar. Já na ala da direita é raro ver uma

liderança que defenda com todas as

letras temas clássicos como a reforma

tributária e as bases do pensamento

liberal. A ideologia acabou no Brasil?

Cortella

A ideologia não acaba,

se você a imaginar como um con-

junto de ideias que justifica a ação

política. Ela pode ser consciente,

declarada, ou mais automática, ro-

bótica. A ideologia como se colocava

antes, com o socialismo, o comunis-

mo, o anarquismo, o liberalismo,

todo esse conjunto foi diluído numa

solução “química”, que gerou essa

nova mistura. Embora ela não seja

simplesmente a

realpolitik

, tornou-

-se algo mais integrado à vida das

comunidades. Portanto, uma apro-

ximação maior da ideologia com

a vida das pessoas. Aquilo que já

foi chamado de direita e esquerda,

com seus exageros — o comunismo

dentro do socialismo e o conser-

vadorismo dentro do liberalismo

— sempre teve certo distanciamento

da população, algo mais teórico.

Hoje, no Brasil, a percepção é a de

que um conjunto de pessoas adere

a ações mais libertadoras, com um

capitalismo de partilha, e outro en-

carna aquele liberalismo do século

19, da meritocracia exclusiva, da

ausência de direitos sociais, do indi-

vidualismo exacerbado. E que esses

dois mundos acabam se conectan-

do. Quando Paulo Maluf ainda não

era petista, você tinha um recorte

da situação. Hoje, temos na prisão

pessoas com um histórico na luta

democrática e outras, fora da prisão,

que simbolizaram a fratura ética.

Isso não significa que uma coisa au-

toriza a outra. É só uma constatação.

Arnaldo

— Acaba sendo difícil identi-

ficar ideologias nesse contexto.

Cortella

Mas não vejo isso como

uma implosão da ideologia. Ela vem

à tona de outro modo, como no cam-

po da sustentabilidade. Veja a Rede:

antes que ela entrasse firme na

possibilidade de fazer parte do apa-

relho de Estado, estava congregando

pessoas em torno de novas ideias em

economia, na ação do Estado. Até

que entrou na realidade política do

cotidiano. Isso não é conformidade,

é inteligência para não desaparecer.

Arnaldo

— Por que no Brasil é tão

difícil falar em ética e moral, sem que

isso soe como hipocrisia ou falso mo-

ralismo? Como estão nossos valores

fundamentais de nação?

Cortella

Aí, sim, temos uma gran-

de novidade, que é a recusa ao apo-

drecimento ético que a população

se dá, e dá aos outros. A ideia de que

vale qualquer coisa porque somos

assim. Estamos adotando valores

mais republicanos. A novidade hoje

não é a corrupção, mas a apuração.

Não é a sujeira. É o início da limpe-

za. Nas últimas duas décadas, nós

tivemos fatos sequenciais de que a

expressão máxima da impunidade,

“acabar em pizza”, não aconteceu.

Ao contrário, teve presidente do

Congresso renunciando, prefeitos

afastados, cidadãos no campo do

empresariado encontrados em deli-

to e punidos. Mas o conjunto ainda

é pequeno para a quantidade de

A imprensa livre gera uma capacidade de divulgação

e de persistência, que aumenta o volume de

denúncias. As plataformas digitais aumentarama

fiscalização e detecção dos ilícitos