janeiro/fevereirode2014|
RevistadaESPM
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Cortella
—
Quando se fala no di-
reito à creche, isso vai para os jor-
nais, a Vara da Infância pressiona
o poder público, e esse movimento
leva a uma constatação desses
direitos. Nós somos uma popu-
lação — sem brincar de Poliana —
muito capaz. Conseguimos criar a
sexta maior economia do planeta
ocupando apenas a posição de nú-
mero 66 em educação. Para quem
acha que há um v íncu lo direto
entre educação e desenvolvimen-
to, quando formos a décima em
educação seremos a maior econo-
mia do planeta? Obviamente, não
funciona assim. Mas estamos se-
guindo em um caminho positivo.
Arnaldo
— Um fenômeno importante
que vem ocorrendo no Brasil é o pa-
radoxo da violência e da distribuição
de renda. Embora a qualidade de vida
tenha melhorado para a maioria da
população, os índices de criminalidade
explodiram. Isso põe por terra a teoria
clássica de que a violência é fruto da
pobreza?
Cortella
—
A pobreza em si não é
um fator de violência, assim como
a riqueza não representa o seu blo-
queio. A nação mais poderosa do
planeta tem o sistema penitenciário
mais extenso. Os níveis de violência
dentro dos Estados Unidos não são
como os nossos de maneira isolada,
mas no conjunto mostram um nível
de agressividade muito elevado.
A partilha de bens que oferecem
bem-estar social, essa sim é um
elemento que colabora para a dimi-
nuição da violência. O que favorece
em grande medida a questão dessa
violência é a circulação em larga
escala dos negócios ilegais e de uma
polícia que é patrimonialista.
Arnaldo
— O Estado ainda não se vê
como defensor do cidadão?
Cortella
—
A polícia passa boa parte
do tempo por conta da legislação e
pelo próprio
modus operandi
, cui-
dando do patrimônio em vez das
pessoas. Exemplo banal: se você liga
para um serviço policial e diz que
o menino da casa vizinha está apa-
nhando do pai, vai demorar a apa-
recer alguém. Se você liga dizendo
que há um assalto a banco
—
que tem
seguro
—
, em um minuto aparecem
dez viaturas. Há um uso muito forte
da estrutura de repressão em defesa
do patrimônio privado. Isso faz par-
te da nossa formação.
Arnaldo
— A violência se deve essen-
cialmente à ineficiência do Estado?
Cortella
—
É verdade que onde se ofe-
recem melhores condições de sobre-
vivência você reduz os motivos que
levam à violência. Mas é difícil ima-
ginar que um menino de periferia
das grandes cidades irá se convencer
a estudar, trabalhar e ter acesso a
todos os bens que deseja com um
ou dois salários mínimos no fim do
mês. No campo da droga, ele recebe
isso em menos de uma semana,
apenas fazendo entrega. E com isso
ele pode ter tudo aquilo que o seduz
no campo da “consumolatria”. Então,
o problema é que há forças agindo
na mesma direção. Tivemos um au-
mento significativo das cidades nas
últimas décadas, um aumento do
anonimato das pessoas e do desco-
nhecimento do aparato policial em
relação aos cidadãos. Isso gera um
adensamento que favorece esse tipo
de eclosão. E a droga é decisiva nisso,
porque ela por si só gera uma grande
cadeia que favorece a violência.
Arnaldo
— O senhor costuma citar a
frase do Tom Jobim de que o “sucesso
no Brasil é uma ofensa”. De onde vem
esta percepção?
Cortella
—
Isso é uma herança do pa-
trimonialismo ibérico. Vale lembrar
que somos uma sociedade fundada
com três forças divergentes. O euro-
peu, que veio para tirar e sair rápido;
o indígena, que queria que todo
mundo fosse embora; e o africano,
que foi trazido à força e queria voltar
para casa. Não nascemos com o es-
pírito de formação de uma nação, e
é diverso da formação de uma nação
mais jovem que a nossa, a norte-
-americana, cujo grupo de pioneiros
veio para fundar outro lugar e viver
nele. A tal ponto de usar a palavra
“novo” — “Nova Inglaterra, Nova
York, Nova Jersey” — como maneira
de fixação. É claro que houve o con-
flito com indígenas, a escravização,
mas numa escala diversa da nossa.
A política partidária perdeu o encanto para
as novas gerações e restaram apenas algumas
pessoas com suas histórias pessoais, comuma atitude
até de heroísmo. Aliás, o heroísmo mudou de foco