Revista da ESPM – Março/Abril de 2002
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negra que oferece o produto de seu seio.
Com o olhar, faz-se sujeito, convidando
o enunciatário a entregar-se ao prazer
gustativo e tátil da amamentação, a sa-
borear o gosto de chocolate da sua pele
misturada ao leite puro.
É nesse encontro sinestésico de dife-
rentes ordens sensoriais, nessa percep-
ção visual que convoca a sensação tátil,
que a experiência do degustar a mulher-
chocolate adquire profundidade. O tato
é tratado por Greimas
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como o mais pro-
fundo dos sentidos, cuja experiência re-
clama, por natureza, a conjunção total
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entre o sujeito e o objeto. Assim, o mais
íntimo
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de todos os sentidos
ressemantiza o gosto. Pelas palavras do
autor,
“o contato saboroso é efêmero,
descendo pela garganta (...) somente
quando ele repousa sobre a tatilidade
que lhe é conjunta
–
a amamentação, o
beijo
–
é que o gosto reencontra sua ple-
nitude”
.
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Dessa fusão sensual, gustativa e tá-
til, do primeiro corpo que nos olha, cha-
mando-nos a partilhar do puro desejo ao
se libertar da sua roupagem, emerge o
segundo corpo, desnudo, entregue ao
nosso olhar. Na imagem também conge-
lada de uma ação que se desenrola, uma
barra é flagrada ao se formar da massa
pura de chocolate.
Cor, disposição e forma permanecem
na isotopia desencadeada pelo corpo da
mulher, recuperando suas propriedades
plásticas. Os detalhes das figuras eviden-
ciam ainda mais a construção proposita-
damente similar das imagens: a
segmentação da barra retoma o corpo
ornamentado pelas pulseiras; a pele é
recriada pela luz que, sinestesicamente,
acentua a textura aveludada, caracterís-
tica dos chocolates ao leite que derretem
na boca.
A mulher revela ser, assim, metáfora
do chocolate. Reconhecida a compara-
ção entre os seres no plano da expres-
são, desvendamos seus efeitos de senti-
do no plano do conteúdo. A mulher, en-
quanto figura, recobre a temática do pra-
zer, evocando o ato sexual eminente no
rasgar do invólucro com que oferece o
corpo. Sendo o chocolate explicado pela
mulher, por meio do mecanismo meta-
fórico, tomamos o prazer sexual por ela
figurativizado como a explicação de um
prazer outro, gustativo: o saborear a bar-
ra de chocolate que se forma, tão provo-
cante quanto o corpo que se despe, para
derreter em nossa boca em
puro deleite
.
Para provarmos desse deleite, basta
que rasguemos a embalagem do choco-
late, que é enfim apresentada na assina-
tura do anúncio, acompanhada do enun-
ciado
Chegou Dove. Puro deleite.
Nele,
o prazer sensorial evocado pelo corpo da
mulher transfere-se à matéria que forma
o corpo do chocolate. Deleitar encontra-
se dicionarizado como causar prazer,
deliciar. No trocadilho morfológico ins-
taurado em
deleite
, este prazer liga-se aos
ingredientes que constituem o produto.
Degustar os corpos, da mulher ou do
chocolate, é sentir prazer pela experiên-
cia – ou pelo experimentar – estésico de
suas qualidades sensíveis.
dominância dos diferentes tons de cinza
criados por variações de luz,
mimetizando reflexos do prata, é quebra-
da apenas pela figura mesma do iogurte,
único ponto de policromatismo percebi-
do na massa de cor.
Três pontos de intensidade de luz,
correspondentes às duas colheres que
ladeiam a cintura da modelo e ao brilho
de seu cabelo, revelam a forma estrutu-
ralmente triangular do corpo. Assim, o
olhar do enunciatário é conduzido da
base do triângulo ao seu topo, percorren-
do ascendentemente a linha da coluna e
seguindo sua inclinação da esquerda para
a direita. Dali, é atraído pela região su-
perior direita do anúncio, que, não
obstante tratar-se do ponto cego da pági-
na, assegura sua força pela presença pon-
tual do policromatismo. No meio desse
percurso, o enunciatário depara-se com
três linhas de texto verbal, agrupadas à
esquerda da figura colorida do produto,
que formam, com este, o bloco de assi-
natura do anúncio. Por fim, resta-lhe se-
guir o suave degradê do fundo, que com
a crescente luminosidade o conduz à re-
gião inferior do anúncio, onde se dese-
nha mais uma linha de texto verbal.
Três diferentes planos são reconhe-
cíveis na composição à direita do anún-
cio. Sobre o fundo cinza, uma figura de
uma mulher é sutilmente sobreposta por
duas colheres em primeiro plano, que lhe
desenham a cintura. Dessa sobreposição
de planos resulta um efeito de afinamento
da silhueta, uma vez que as colheres co-
brem parcialmente o corpo, acentuando
suas curvas.
O corpo da mulher é visto de costas,
totalmente despido, em uma posição re-
clinada. É um corpo entregue ao nosso
olhar, que se exibe para ser contempla-
do. Seu braço esquerdo, elevado, dobra-
se em direção às costas, revelando no
gesto pouco natural uma postura de mo-
delo que posa para uma obra de arte clás-
sica.
Se a forma nos sugere a mulher-mo-
delo, a cor nos revela a mulher-obra. Eric
Landowski
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observou que a estetização
do corpo – que implica sua objetivação,
Ocorpo
desnatado
Omonocromatismo característico do
anúncio de Dove é reencontrado no
anúncio do iogurte Molico. Neste, a pre-
“A embalagem do
produto,
reconhecível
pela assinatura
do anúncio,
é sua única
vestimenta.”