Valores, o fundamento invisível das civilizações
R E V I S T A D A E S P M –
março
/
abril
de
2010
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Certa vez o autor do presente texto cami-
nhavaemmadrugadasemluanumaáreade
cerradovirgemnoBrasilcentral.Guiava-oa
luzqueuma lanterna lançavasobreobreu.
De repente, noar, uma fragrância intensa,
floral.O caminhanteperscrutou como fa-
chodeclaridade tudoem tornoasi.Oculta
permaneceuaflor.Evidente,inquestionável,
eraasuaexistênciaeaçãosobreoviandante.
Perfumou-o,estancou-o,extasiado,inebria-
dopeloquenuncachegouaver.Aindahoje
ele ignora a cor, não sabe nomeá-la, nem
pode duvidar da existência daquela flor
recatada. E jamais a esquecerá. Análoga é
nossa relaçãocomoquenos transcende.O
queé, ouquemé, nãoo sabemos.Quanto
aqueé, àquelesdenósque lhe sentimos a
fragrâncianãonosédadoduvidar.
Dentre as tradições do ExtremoOriente, o
Hinduísmo usou o termo
Tat
, Aquilo, para
indicaroquenãosepodedefinir,massepode
descobrirqueé.Oequivalentebudista,
Sunya-
ta
,étraduzidoparalínguasocidentaisemdois
termos:VazioeNada.Talvezsejaumexcesso
decautelaacrescentarqueoVazionestecaso
não se refere à ausência ou falta, e oNada
não significa negatividade ou inexistência.
A distinção heideggeriana entre Ser e ente
ajuda-nos a compreender queénovaziode
entesqueoSersedá,assimcomoapresença
dosentes tendeavelá-lo.Eénonadaôntico
queavigênciadoontológicosedesvenda.
OBudismodescrevecomdois termos,
Prajna
,Sa-
bedoria,e
Karuna
,Compaixão,comopercebemos
apresençaeaçãosobrenósdoquenostranscende.
Prajna
,porqueoqueháparaalémdenósevidencia
umaharmoniadeextremacomplexidade,precisão
e constância, apartir da qual formulamos oque
chamamosdeciência.Quantomaisevoluiaciên-
cia,maiscomplexaserevelaestaenigmáticapreci-
sãoeconstânciaqueseguimosainvestigar.
Karuna
,
porquepercebemosumaespéciedecaloramoroso
nessa sabedoria que nos ultrapassa, antecede e
sucede,mas tambémnos impacta aomanifestar
suapresençaativa.Nesteponto
Sunyata
nosajuda
aevitaratentaçãoantropomórfica.Ossentimentos
queentrenósconhecemosassemelham-seaosque
percebemosemnósnaaçãoepresençadoquenos
transcende.Masanalogianãoé identidade. Inferir
queentãooquenos transcendesejacomosomos
é, nomínimo, um erro lógico, uma infundada
assunção.Asemelhançaemcomosentimosoque
nosafetaseoriginaemnósmesmos,nãonaquele
Outro radical. Sópodemos entender, expressar e
descrever a forma como somos impactados por
essapresençamisteriosa.Nuncaoqueseja, emsi
mesmo,oquenos impacta.
Perdoe-nos o leitor a digressão na seara da
ontologia,mas ela há de nos ajudar na reflexão
sobreosvaloresperenes,poiséde lá,doSer,que
elesemanam.Quandonosapercebemosde sua
existência, vemos tambémquealumiamnossas
vidas, e que, sob sua égide, da barbárie nasce
civilização. Os valores que nos transcendem
inspiram-nos os valores que nos humanizam.
Enquanto persistirmos cônscios da insondável
presença a balizar nossa caminhada, estará as-
seguradoque“avida intelectual, artística,moral
ematerial deumaépoca, deuma região, deum
paísoudeumasociedade”continuarávitalizada.
Quandoos valores jánãovigoram, a civilização
começa a fenecer, ainda que continue por al-
gum tempo aparentando pujança. Em lugar de
ideais, restam ambições. Em lugar de acordos e
consensos, impõe-seopoderda forçaoucoação.
Quando jánãonos apercebemos da fragrância,
nemmesmoamaissofisticadatecnologiapoderá
garantiroperdurardacivilização.Semacorres-
pondência com o perene, os valores temporais
têmapenasovigordomomentoquepassaede-
saparece.Adelicadasintoniaentreosvaloresque
formulamoseaquelesquenos inspiramsustenta
a continuidade de uma civilização. É também
estasintoniaqueasseguraadireção inclusivados
valoresterrenosque,deoutromodo,poderiamse
tornar instrumentode interessesparticularesde
conjuntosespecíficosdeentesemdetrimentode
outras expressões daVida. A referência ao todo
relembra-nosummododeser,pensareagirque
ajudaavidaaprosperar,masnãoapenasanossa
vidacomo indivíduosougruposparticulares.
}
Emissáriodeum
rei desconhecido
Eucumpro informes
instruçõesdealém,
Easbruscas
frasesqueaos
meus lábiosvêm
Soam-meaumoutro
eanômalosentido...
~
C
ancioneiro
, 73.13,
F
ernando
P
essoa
Osvalores temporaissão
terrenos.Osvalorespere-
nessãocelestes.Usamos
aqui a distinção que pri-
meiro aparece no pensa-
mentochinêsno
IChing
,o
LivrodasMutações.