Setembro_2001 - page 11

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Revista daESPM – Setembro/Outubro de 2001
1.Delimitação
do cenário
A semelhança do título deste artigo
comododramadeEdwardAlbeenãoé
meracoincidência, ambosapontampara
o cerne de relações corroídas pela che-
gada de novos tempos.
Quem temmedo deVirginiaWoolf?
(Albee, 1988) começanamadrugadade
um sábado qualquer e tem como ponto
de partida um desencontro, que vai se
revelandomais emais profundo ao lon-
godascenas.Oclima tenso trazà tonao
pior lado dos personagens centrais – o
casal George eMartha – num contexto
de ofensas, competição e desencontros.
Georgeéumprofessoruniversitário,
rotulado de fracassado pela sua esposa,
eMartha – filha do diretor da universi-
dadeemqueele leciona–éumamulher
seis anosmais velha que o seumarido,
acusada de futilidade pelo mesmo. A
entradaemcenadeum jovemcasal,Nick
eHoney,–umprofessordeBiologiacom
a sua mulher, frágil e aparentemente
burra–, aprofundaaindamaisoconflito
aomostrar a hipocrisia existente nessas
relações.
A peça foi escrita nos Estados Uni-
dos da década de 60, uma sociedade
mergulhadanocontrasteentreaprospe-
ridade econômica da década anterior –
já em decadência – e a repressão cultu-
ral decorrente da Guerra Fria. O
macartismo, uma verdadeira caça aos
comunistas, exacerbava o clima de
conservadorismoenacionalismo,geran-
do severas críticas – como a do próprio
Albee – ao
americanway of life
.
Talvez fossepor issoque, naprimei-
ra montagem, de 1963, o fundo do ce-
nário tivesse dois retratos: o deGeorge
Washington – fundador da democracia
americana–eodeMartha– suaesposa.
O esgotamento da relação do casal de
protagonistas – que a princípio poderia
ter sido outro qualquer – tinha naquela
ocasiãoumsentidometafórico, apontan-
do tambémpara adeterioraçãodo capi-
talismo americano, ameaçado pela crise
e pelo desemprego que geravam protes-
tos de várias espécies: agitações, mani-
festações pacifistas, lutas contra o pre-
conceito emovimentos estudantis, con-
viviam numa cena de desmoronamento
dascertezasque tinham sidoconstruídas
pelos filhos do
baby boom
.
Num certo sentido, o atual cenário
pode ser aproximado daquele dos anos
60, sobretudose levarmosemconsidera-
ção que as três maiores economias do
mundo – Estados Unidos, Europa e Ja-
pão – pararam de crescer e começam a
provocaruma reaçãoemcadeiacapazde
levar os demais países do mundo
globalizado à recessão.A desaceleração
das economias desses países temgerado
umacrise,diminuindoasexportaçõesdos
países emergentes para os países ricos e
encolhendoos investimentosexternosem
suas economias.
1
Mas se existe alguma semelhança
entreoatual contextoeodos anos60no
que se refereàcriseeconômica, asestra-
tégias atravésdasquais a sociedadevem
reagindo diferem bastante daquelas em
que os estudantes da universidade de
Berkeley protestavam contra o treina-
mentomilitar (1959), os americanos fa-
ziam manifestações políticas contra a
decisão do presidenteKennedy de rom-
per relações diplomáticas com Cuba e
proibir o deslocamento de americanos
paraaquelepaís (1961)oucontraaGuer-
ra doVietnã e os
beats
sugeriam como
alternativa ao sistema uma saída coleti-
va,capazde rompercomoconformismo.
Nestes tempos paradoxais em que a
globalização demercados e capitais e a
dissipaçãodas fronteiras convivemcom
o recrudescimentode lutas religiosas, se-
gregações étnicas e nacionalismos
xenófobos,omundoparececaminharem
duasdireções antagônicas: deum ladoa
planetarizaçãopolíticaeeconômicaede
outroa fragmentaçãode lugares, ritmos,
linguagens e desejos. (Carvalho,
1997:43)
2.Aconstrução
dospersonagens
Ao mesmo tempo em que a
globalização tendeasuprimirasdiferen-
ças, inúmeras culturas e subculturas
emergem constantemente, apontando o
desacertodosprofetasapocalípticos,que
previam uma homogeneização e
massificação das subjetividades como
conseqüência da fabricação em série de
produtos culturais através da indústria,
bem como da sua divulgação maciça
pelos meios de comunicação demassa.
Na verdade, tais profecias parecem es-
barrar num traçopsíquico característico
doserhumano,que, seporum ladocons-
trói a sua identificação a partir da inser-
çãonumgrupoespecífico,poroutro lado
carregaaparticularidadede só ser capaz
de se constituir enquanto sujeitoname-
didaemqueessa
alienação
aooutropos-
sa se articular com uma
separação
que
lhe garanta uma singularidade específi-
ca
À impossibilidade estrutural de
homogeneização totalapontadapelapsi-
canálise–e istovale tantoparaos sujei-
tos quanto para as culturas – a contem-
poraneidade vem somar uma realidade
histórica que tem como característica a
multiplicação incessante das identifica-
“Adesaceleração
das economias
dessespaíses tem
geradouma crise,
diminuindoas
exportaçõesdos
países emergentes
paraospaíses ricos
eencolhendoos
investimentos
externos em
suas economias.”
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