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Revista daESPM – Setembro/Outubro de 2001
E
ntre os últimos escritos do filó-
sofo romântico alemão A.
Schopenhauer figura uma cole-
ção de ensaios, aforismos e pensamen-
tos
intitulada
Parerga
und
Paralipomena
.Datadoanode1851.Em
umde seus capítulos, “Sobreo livro e a
escrita”, aprende-seque a
leitura
repre-
sentao encontrodo livro lido com a ca-
beça do leitor. E, ironiza o filósofo, se
dessa colisão provier um som oco, não
terá ele, necessariamente, sido causado
pelo livro.
É provável que, com essa alegoria,
Schopenhauer estivesse sugerindo que
tudo sepassacomo seas reflexões, pos-
tas no papel, fossem semelhantes a pe-
gadasnaareiamolhada: aonotá-las, ve-
mosocaminhoquealguémpercorreue,
logo, podemos segui-lo se assim dese-
jarmos. Todavia, se quisermos saber o
que ele em seu percurso viu, estaremos
obrigados a exercitar nossa própria ca-
pacidadedever. Faremos, então, da
lei-
tura
algo como uma forma primária de
arte, ao menos pela seletividade infor-
mada, queexige, eoafinamentoda sen-
sibilidade, que proporciona. Será o
lei-
tor
legítimo senhor daquilo que pensa,
jamais escravo de seu pensamento pró-
prio. Dono de sua voz e não (a) voz de
seu dono, ele sonha o sonho do homem
e acorda ohomemdo sonho.
Ler
e
selecionar
constituemativida-
des afins, sempre que da busca de algu-
ma verdade se trate, seja ela a verdade
factual, negadapelamentira; seja aver-
dade científica, cujo contrário é o erro;
seja, ainda, a verdade filosófica, cuja
antítese é a ilusão. De resto, a verdade,
como queria Sócrates, não está com os
homens, senão
entre
oshomens;domes-
momodo, deacordocomoutro filósofo
grego, Aristóteles, de muitas maneiras
se diz a verdade.
O que significa, porém,
leitu-
ra
? Sob a forma, hoje desusada, de
lectura
provémo termoda tradição lati-
na, tendo por origem imediata o verbo
grego
lego
; e este, de par com a forma
nominal
logos
, diz respeitoauma sínte-
se filosófica, reunindo “ser”, “saber” e
lê
é compatibilizar o texto lido com seu
cabedal, seu patrimônio pessoal consti-
tuídoporconhecimentos,vivênciaseex-
periências. Dizendo-se de outro modo,
seu “horizonte de expectativas”.
Ocupando-sedaarte literária, o filó-
sofo francês Jean-Paul Sartre escreveu
ser a
leitura
uma síntesedepercepção e
criação: o leitor desvela e cria, aomes-
mo tempo;desvelaaocriarecriaaodes-
velar.
Leitura
corresponde a
“aclaramento” ou “elucidação”, rumo a
um sentido constituído pela totalidade
formada pela obra.
Poroutro lado, aconhecidanoçãode
“obra aberta”, introduzida pelo escritor
italianoUmbertoEco,encontraseus fun-
damentosnoprincípiodequeasmoder-
nasobrasdeartesecaracterizamporuma
indeterminação estrutural, induzindo a
que secreianocaráter ilimitadode suas
possibilidades estéticas. Vale lembrar
que não poderiammesmo ser obras de
arte se, liminarmente, dispensassem a
cumplicidade construtivadeum fruidor
avisado. Por tal razão, será declarada
“aberta” –mas jamais “escancarada” –
a obra de valor cultural e artístico que
não somente ofereça um leque de deci-
sões interpretativas, senão tambémaque
faz desta desejável multiplicidade um
programaestético, inscrevendo-aemsua
estrutura.
Por suavez, cogitandodeuma
leitu-
ra plural
(e, não obstante, finita), o es-
critor francês Roland Barthes adverte
que reduzirum textoàunidadedosenti-
do, pormeio de uma “leitura unívoca”,
é esgarçar, sem qualquer proveito, sua
tessitura simbólica. A extensa gama de
significados quepodem ser associados a
um textodecortepoético, tantoquantoa
possibilidade de a ele serem atribuídos
significados exclusivos, talvez expli-
quemnãosomenteapluralidadedas“lei-
turas”, senão também sua (porvezeses-
pantosa) arbitrariedade. A impressão
de“abertura ilimitada”deumaobraserá
pouco mais do que um devaneio, por-
que a
leitura
(parcelar e parcial) de al-
gumas de suas seqüências, arranjos ou
combinaçõespodeproporcionar ilações
“fazer”. Entre as numerosas acepções
que possui,
logos
inclui a de “parábo-
la”, isto é, manifestação verbal ou nar-
ração alegórica; portanto, pelo que de-
las se puder colher, chegar-se-á a uma
“compreensão superior”. Quanto à for-
maverbal correspondente, aceitaela tra-
duções como “recolher”, “coletar” e
“coligir”; secundariamente, as de “di-
zer”, “proferir”, “declarar” e “recitar”.
Já
legere
, a forma latina do verbo
“ler”, alternaecombinaas idéiasde“co-
lher”, “selecionar”e“eleger”. Istoposto,
tem-seque
leitura
querdizerprocessode
identificação e reconhecimentodo
plano
daexpressão
deum
texto
, oumelhor, sua
superfícievisível; será,portanto,“açãode
ler-seum textoescrito”.A“reconstituição
dosentido”,quede imediatoo leitorope-
ra, faz da
leitura
“construção de um ob-
jeto dotado de significado”. Entretanto,
pelo fatodenão seempenhar emprofun-
dadiscussãono tocanteao
planodecon-
teúdo
do texto, mas, antes, buscar a
fruição (por empatia) que a “criação ar-
tística” favorece,o leitorasipróprioqua-
lifica como “(co-) produtor” deste mes-
mo texto, escapando ao anonimato ine-
rente à condiçãodemero consumidor.
A
leitura
será função de um
repertó-
rio
, acervo cultural próprio a cada um:
quanto mais amplo e variado for, mais
proveitosa ediversificada será a “colhei-
ta espiritual” feita.A tarefa daquele que
“Seráo
leitor
legítimo
senhordaquilo
quepensa,
jamais escravo
de seu
pensamento
próprio.”