Setembro_2001 - page 46

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Revista daESPM – Setembro/Outubro de 2001
dogmático, por formar um discurso que
somente flui para o interior de suas pro-
posições peculiares. E, assim fazendo,
não assinala nem relaciona evocações
simbólicas que possam desafiar propó-
sitos de um entendimento unívoco. A
isto, o senso comum evoca pela expres-
são “jogar-se fora a criança com a água
do banho”.
Emvirtudeumapropostaexistencial,
a
leitura
estima e dispõe; revela e
implicita; envolvee institui,podendopor
tudo isto servir comouma apreciaçãode
valor
a priori
. Em caso-limite, será afir-
mação de uma falta demedida do
leitor
,
quevoluntariamentevalorizaoudeprecia
um autor e suaobra.
Por suavez, a
interpretação
, fundan-
do-se em decisão filosófica, pondera e
propõe; desvela e explicita; devolve e
constitui, podendopor talmotivo repre-
sentar juízo crítico
a posteriori
. Onde
querqueumhomem sonhe, profetizeou
se ponha a teorizar, um outro pode er-
guer-separa interpretar.E láondealguém
interpreta–oofíciodopsicanalista, com
sua “leitura do humano” – o outro dele
mesmo pode levantar-se para sonhar e
afirmaremestadopoético.
Interpretação
traduz construção regrada de significa-
dos e anotação de sentidos, a que se in-
corporamo talentoea forçaoperanteda
imaginação. Trata-se, portanto, de algo
distinto de uma decodificação prosaica,
de um rasteiro entendimento, ainda que
sejam um e outro competentes a seu
modo.
Enxerga-se no
intérprete
o “viajante
intelectual”, ocaminhantedeterminado,
que descobre coisas, adquire conheci-
mentoseasipróprioenriquece.Estádis-
ponível edispostoa fazercontatoscomo
novas realidades, apreciar paisagens so-
ciais e se empenhar em conhecê-las de
bem perto. Nessa sua trajetória, ele se
apartado turistaacidentalque, contando
apenas com informações, segue um iti-
nerário, encontra e retoma sendas bati-
das, as quais passa a conhecer e registra
sem jamais se aperceber de que viveu
uma aventura intelectual.
Se a si próprio o
intérprete
expressa
com rigorcrítico, tambémexercita, com
engenho e arte, um autêntico
intelleto
d’amore
. Sua argumentação, enunciada
por uma seqüência de raciocínios
finamenteencadeados, sesustentaem (e
por)um
ethos
, respeitanteàquelequear-
gumenta; por um
logos
, referente à ra-
zão pela qual argumenta; e um
pathos
,
que se relaciona à paixão que desperta
em quem ouve ou lê seus argumentos.
Raroe seletoéoprazer queasgran-
des obras proporcionam, dando a ouvir
a voz de um autor, a força de sua ex-
pressãovigorosa, original eúnica.Uma
leitura
facultará a participação emocio-
nada,porexemplo,nouniverso ficcional
proposto por uma obra de arte literária;
reconhece, de plano, que tal obra traz,
artisticamente inscritos em sua compo-
sição, seus próprios referentes. E estes
últimos,por forçadeumamediaçãosig-
nificativa, podem ser atualizados
pelo
e
para
o interessado
leitor
. Quanto à
in-
terpretação
, que sobrepõeum sentido fi-
gurado a um sentido literal, servirá ela
como“tradução”, “transcriação”e“atua-
lização poética”. Aliada a uma técnica,
assim como a amplos e diversificados
conhecimentos, a
interpretação
se faz
te-
oria
(“contemplação educada”); deve,
porém, observar seus próprios limites,
paraquenão se torne “cinzenta” (débil e
inexpressiva) ante o “verdor da preciosa
árvoredavida”,nodizerdopoetaromân-
tico alemãoW.Goethe.
A crítica norte-americana Susan
Sontag se declarou inequivocamente
“contra a interpretação”
, opondo, por
inconciliáveis, teoriaeexperiência.Afir-
mouque toda
interpretação
fazsuporum
valor (possivelmente, o da construção
teórica que a sustém), aopassoque uma
leitura
testemunha acolhida e aceitação
de natureza qualitativa, nutridas que são
pela experiência sensível. Donde a valia
catártica (terapêutico?) de toda
leitura.
Se interpretar significa “tornar inteligí-
vel”, “descerrar o verdadeiro sentido”,
então uma ação interpretante deverá ser
avaliada de acordo com a perspectiva
própria da consciência humana. Depen-
dendo do contexto social e histórico e
social em que se aliste, a
interpretação
,
assim concebida, será “libertadora” ou,
mais comumente, “reacionária”.
Interpretar, faz crer Sontag em seu
enlevoantiintelectualista, éalterar, talvez
mesmo adulterar, na medida em que há
esmero em se fazer versão do fato. Re-
velar programaticamente o conteúdo de
umaobradearte implica“domesticá-la”,
tornando-a “manipulável”, como tem
ocorrido com a literatura. A
interpreta-
ção
tende a considerar favas contadas a
experiênciadossentidosprimários, train-
do seu desinteresse em valorizá-la. Já a
“crítica sensível daarte”, acrescentaesta
ensaísta, ávida por encontrar a “transpa-
rência”–àqual chamade“luminosidade
do objeto artístico em si mesmo” – irá
fazer deum tudopara“mostrar oqueé”,
não“oquesignifica”.Deixaráemsegun-
do plano o “conteúdo” em benefício de
uma “visão da coisa em si mesma”, vi-
gorosaem suas formasaparentes, imedi-
atamente perceptíveis, palpáveis, que se
ofertam à experiência dos sentidos ele-
mentares. Assim procedendo, restaura
incontinentiogumedenossa lâminasen-
sorial.
Em resumo, as astúcias de Eros são
preferíveis aos diligentes esforços de
Hermes.
Interpretarquerdizer“estabelecerum
preço”,“procederaumaaferição”;é
com-
preender
pelo recursoaumaexplicação.
Agenuínaprática interpretativaexibe,em
“Eo claro risco, que
aqui se corre, éo
deproduzir-se
poucomaisdoque
aexpressão, algo
desorganizada, de
um feixede
impressõespouco
consistentes e
fugidias.”
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